Folha de S. Paulo


A construção da convivência e do conflito

RESUMO No ano do centenário de seu nascimento, a obra de João Batista Vilanova Artigas (1915-1985) volta à cena. Este ensaio destaca a incorporação do conflito na arquitetura da "escola paulista" e chama a atenção para as relações entre público e privado no trabalho de Artigas e na obra de artistas como Lygia Clark e Hélio Oiticica.

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Estudei na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo nos anos 1990. Não foram poucas as vezes, naquele tempo, em que alunos viraram a noite trabalhando nos ateliês da faculdade, que para nós ganhava ares de uma grande moradia coletiva e solenemente urbana.

Lembro que em uma dessas madrugadas, ao ouvir a canção "Tropicália" em um aparelho de som portátil, um amigo teve uma súbita epifania no seguinte verso: "O monumento não tem porta/ A entrada é uma rua antiga, estreita e torta/ E no joelho uma criança sorridente, feia e morta/ Estende a mão".

Tomado pelo torpor de noites mal dormidas, e pela clara emoção de estar convivendo naquele edifício "sui generis", ele desconsiderou inteiramente as imagens terríveis daqueles versos e apostou: "cara, é a FAU!".

É claro que ele pensou na imagem do monumento sem porta, que de fato caracteriza a FAU. A diferença é que os versos de Caetano, escritos em 1967, três anos depois do golpe, e dois anos antes de o edifício da FAU ser inaugurado, se referem claramente aos palácios algo metafísicos de Brasília, para os quais a aparente ausência de portas, naquele momento, significava clausura, e não liberdade.

Foto Adriano Vizoni/Folhapress

Ironicamente, o edifício da FAU, projetado em 1961, veio a ser inaugurado apenas no início de 1969, no exato momento em que, na esteira do AI-5, os arquitetos Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha e Jon Maitrejean eram cassados da faculdade.

Membro destacado na fundação daquela faculdade em 1948, e autor do projeto do edifício e da concepção pedagógica do curso, Artigas passou dez anos fora da FAU, até retornar, com a anistia, pela porta dos fundos (se o prédio tivesse portas), na condição precária de auxiliar de ensino.

Muito significativamente, em 1983, a congregação de professores da faculdade barrou o pleito para transformá-lo em professor titular, o que lhe restituiria a condição profissional anterior à cassação, reparando em parte a injustiça sofrida. O front era agora na própria faculdade, no limiar da reabertura democrática do país.

No ano seguinte, Artigas resolve, constrangido, se submeter a um concurso de titulação, ao final do qual declara, enfurecido, ter sido vítima de uma "molecagem medieval". Seis meses depois, em janeiro de 1985, vinha a falecer antes de completar 70 anos. Seu legado, no entanto, permanece muito vivo.

Vilanova Artigas é o criador de uma verdadeira "escola" de arquitetura, a chamada "escola paulista". Um legado que se transmite de geração em geração há décadas, e que dá o tom da produção arquitetônica brasileira contemporânea.

OLIMPO

Em um registro filmado de 1978, que pode ser visto na "Ocupação Vilanova Artigas", no Itaú Cultural até 9/8, o arquiteto explica sua intenção ao projetar o edifício da FAU. Em suas palavras, diz ter buscado a simplicidade total, sem a menor concessão a nenhum barroquismo, criando uma entrada que é um peristilo clássico, como um templo grego sem porta. Raciocínio que termina com uma frase lapidar, que até hoje causa ódio em todos aqueles que se sentem desconfortáveis no prédio: "Só entram deuses na FAU. Lá não tem frio nem calor!".

Essa é, de fato, uma frase notável, sobretudo se considerarmos que o seu autor é um comunista ateu. O prédio da FAU, acima de tudo, inspira respeito e admiração pelo modo como nos educa. Um edifício feito sem a divisão hierárquica entre salas e corredores, no qual todos os espaços têm a qualidade de lugares de estar e de desfrute, como no caso de suas famosas rampas. Uma escola que carrega consigo um ideal civilizatório, relativo à importância e à responsabilidade do viver compartilhado, no qual a liberdade não é um atributo fácil nem imediato, mas algo que se conquista aos poucos.

"Quem der um grito, dentro do prédio, sentirá a responsabilidade de haver interferido em todo o ambiente", escreve o arquiteto no memorial do projeto. Pois ali "o indivíduo se instrui, se urbaniza, ganha espírito de equipe", completa.

É importante frisar aqui a ideia de urbanidade, pois a imensa liberdade que o edifício da FAU inspira necessita de uma mediação fundamental, que é o respeito ao lugar do outro. Está aí uma das características centrais da chamada "escola paulista" de arquitetura: o combate ao predomínio do doméstico e do privado, no Brasil, sobre a instância pública. É o que, na teoria social, chamamos de patrimonialismo: a tendência, muito própria a certos países colonizados e escravocratas, a tratar os assuntos públicos com base nas relações pessoais de favor.

Não por acaso Artigas projetou tantas casas. Casas que se contrapõem frontalmente ao idílio doméstico, ao fetiche da intimidade, às ideias de privacidade, segredo e compartimentação, ao pequeno conforto burguês, com seus bibelôs e pelúcias.

Erigidas em uma cidade desprovida de beleza natural evidente, e que cresceu muito rapidamente sob a força predatória da especulação imobiliária, as casas e escolas de Vilanova Artigas deram as costas à trama urbana, procurando reconstruir internamente espaços de uma sociabilidade nova, coletivista e mais austera. Isto é: cidades em laboratório. Daí as "janelas" que se abrem para o céu, e não para o entorno. E daí, também, a aparente contradição entre o aspecto externo de fortaleza dessas obras –volumes puros e cegos–, e a sua delicada riqueza espacial interna, feita de grandes transparências e continuidades.

Artigas fez uma verdadeira revolução na arquitetura residencial de São Paulo, projetando e construindo casas em que os telhados são substituídos por lajes, as fachadas por empenas cegas, o tijolo pelo concreto aparente, os andares tradicionais pelos meios níveis, as escadas por rampas, e as janelas por claraboias. Descrevendo de forma entusiasmada a espacialidade inteiramente nova e despojada dessas casas, Paulo Mendes da Rocha as compara, de forma nada ingênua, a castelos. Casas que nos dão a impressão, segundo ele, de poderem ser percorridas a cavalo.

Trata-se, no fundo, de uma revisão da relação tradicional entre programa doméstico e lote urbano em São Paulo, herdeira tanto do modelo dos palacetes ecléticos da elite quanto da acanhada tipologia rural importada sem mediações para a cidade. Com isso, Artigas abole, por exemplo, o longo corredor lateral que costumava levar o automóvel para uma garagem situada na parte de trás das casas, junto aos aposentos de serviço. Ao mesmo tempo, à medida que unifica toda a construção sob uma cobertura única, avança ao máximo possível o edifício sobre os limites do lote, absorvendo-o no interior da casa na forma de jardins internos.

Em um profético artigo de 1950, Lina Bo Bardi afirma que uma casa construída por Artigas não segue as leis ditadas pela vida de rotina do homem, "mas lhe impõe uma lei vital, uma moral que é sempre severa, quase puritana". Digo que é profético porque tais características ficariam mais claras apenas a partir de 1956, com o projeto da Casa Baeta, considerado o "turning point" de sua obra madura.

De qualquer maneira, a ideia de contrariar a rotina convencional em nome de uma moral severa é muito precisa. Pois não é o puro funcionalismo ou a rotina doméstica que explicam os partidos adotados por Artigas em suas casas dos anos 60. Afinal, porque resolver uma casa como um grande pavilhão suspenso e treliçado, apoiado em apenas quatro pilares, com grandes vãos e balanços, como se fosse uma ponte? A resposta não é funcional nem técnica.

Muitas das casas de Artigas se parecem com equipamentos urbanos, obras públicas, como estações rodoviárias, fóruns e escolas. Ao mesmo tempo, o arquiteto chegou a substituir espelhos padrão de sanitários de escolas suas por espelhos retrovisores de caminhão, por exemplo, e a determinar o uso de iluminação de rua para a luz geral do interior da FAU –esses refletores foram infelizmente trocados na reforma recente do edifício. Novamente, é o paradigma do mundo urbano que aparece aqui de forma absolutamente coerente e radical.

QUIXOTE

Sérgio Ferro, seu discípulo dissidente, viria a criticar o que entendeu como um descompasso entre ideologia e realidade. Afinal, o paradigma dessa arquitetura havia sido formado, no período da construção de Brasília, com o alto objetivo de edificar um país novo e moderno. No entanto, cortadas as perspectivas emancipatórias desse projeto, com o golpe de 64, ela se via restrita, em sua opinião, à tarefa quixotesca de construir um país metafórico no interior de casas de classe média. Radicalidade ou maneirismo?

O fato é que a obra de Artigas, diferentemente do que ocorre no caso de boa parte dos seus discípulos, nunca evitou o sentido de contradição, incorporando o conflito na forma construída. Preso pelos militares e exilado desde a primeira hora, em 1964, depois cassado da universidade em 69, Artigas sabia, no entanto, que o projeto do "milagre econômico" brasileiro, por mais contraditório que parecesse, na prática não estava tão distante da aposta que o Partido Comunista fazia no avanço das forças produtivas nacionais.

Assim, foi buscando abrir caminho em meio a um contexto turbulento que ele veio a construir casas, escolas, clubes, sindicatos e estações de transporte tão significativos, empregando uma didática estrutural explícita e até exagerada, cujas "proezas e audácias", em suas palavras, expressavam um caráter voluntariamente "impaciente", que procurava formalizar por antecipação um desenvolvimento político e cultural do país que deveria vir a reboque.

Aliás, é exatamente a questão da incorporação do conflito na forma construída que distingue tão fortemente a poética da arquitetura feita em São Paulo, a partir de Vilanova Artigas, daquela feita no Rio de Janeiro, a partir de Oscar Niemeyer. Uma arquitetura que incorpora de forma tensa as lições do materialismo dialético, revelando as marcas das fôrmas de madeira nas superfícies de concreto, por um lado, e criando estruturas pesadas que parecem pressionar o solo, mas que afinal se afinam ao tocá-lo, quase desfazendo-se, por outro. A propósito, em uma das raras passagens em que se refere a Niemeyer, Artigas declara o seguinte: "O papel do arquiteto não consiste numa acomodação; não se deve cobrir com uma máscara elegante as lutas existentes, é preciso revelá-las sem temor".

Diferentemente do Rio de Janeiro, onde o curso de arquitetura nasceu da Escola de Belas Artes, em São Paulo a linguagem construtiva não trai a sua origem politécnica. Daí, talvez, o maior gosto pela dimensão do peso entre nós, em oposição à leveza aérea carioca. Consciente dessa questão, e entusiasmado com as suas possibilidades poéticas, Artigas gostava de inserir os edifícios na paisagem com atenção e respeito pelo modo como eles sentam no chão, exprimindo, em suas palavras, uma dialética entre o fazer e a dificuldade de realizar.

Vemos muito bem, aqui, o ímpeto agonístico de sua obra, bem como de sua visão de mundo. Pois para ele a noção materialista de conflito é sempre determinante, mesmo quando mobiliza entidades cosmológicas como o céu e a terra, isto é, o imperativo telúrico, por um lado, e a promessa de transcendência, por outro. Em uma bela síntese da sua própria poética como algo construído pelo jogo de antagonismos, o arquiteto assim a define de modo primoroso: "Procuro o valor da força da gravidade, não pelos processos de fazer coisas fininhas, uma atrás das outras, de modo que o leve seja leve por ser leve. O que me encanta é usar formas pesadas e chegar perto da terra e, dialeticamente, negá-las".

CURTO-CIRCUITO

Ideologicamente, com efeito, os arquitetos da "escola paulista" permaneceram ligados a um ideário nacional-desenvolvimentista e a um projeto de Estado próximo ainda dos dourados anos JK, numa época em que muitos artistas do teatro, do cinema, da música e das artes plásticas adentravam a contracultura, mirando o país pelo seu negativo, por suas mazelas, e por uma via terceiro-mundista. Como a "estética da fome" de Glauber Rocha, ou o "Brasil diarreia" de Hélio Oiticica.

Daí a imagem de Brasília como um monumento aberrante na "Tropicália" de Caetano Veloso, onde "os urubus passeiam a tarde inteira entre os girassóis". O monumento fechado no qual não se entra, ou do qual não se sai, e que o meu amigo, num lapso intrigante, confundiu com o prédio da FAU.

Ocorre que talvez uma das marcas mais notáveis dessa geração de artistas brasileiros, e mais especificamente de Hélio Oiticica e Lygia Clark, tenha sido a proposição de um curto-circuito entre as esferas pública e privada, trazendo a público de forma ostensiva experiências radicais de subjetividade.

É o que declara, por exemplo, Vito Acconci, quando admite a importância que o trabalho de Oiticica teve no meio de arte underground norte-americano na virada dos anos 60 para os 70, depois que os seus "Ninhos", instalados no MoMA, permitiram o desenvolvimento de prolongadas vivências íntimas em espaço público (conta-se, inclusive, que na visita guiada da família Rockefeller à exposição um casal foi surpreendido fazendo sexo no interior de uma das celas, o que Oiticica veio a classificar como "o máximo em termos de participação do público na obra de arte").

Do ponto de vista cronológico, esses trabalhos de Hélio coincidem com as casas mais radicais de Artigas e Paulo Mendes da Rocha, não por acaso o momento de maior tensão social e política no país, situado ao redor do AI-5. Momento em que nossa melhor produção artística e arquitetônica radicaliza a sua negatividade experimental, combinando a guerrilha política a uma espécie de guerrilha estética.

Contudo, se de um lado os arquitetos buscavam transformar casas em espaços públicos, reduzindo ao limite sua condição doméstica, de outro os artistas plásticos construíam células vivenciais que subjetivariam o espaço público.

Eis aí uma curiosa inversão, e, ao mesmo tempo, penso eu, uma significativa contribuição da arte brasileira –arquitetura incluída, evidentemente– ao mundo.

Ações transgressivas que forçaram os limites clássicos da fronteira entre público e privado, vindos justamente de um país em que, muito a propósito, a esfera pública parece nunca ter se constituído plenamente como um valor social afirmado.

Pode parecer curioso, mas se olharmos para os amplos espaços internos da FAU de Artigas, com seu jogo ativo de planos soltos e defasados, opacos e transparentes, e estruturadores de um sistema de circulação contínua, podemos pensar também nos "Núcleos" de Hélio Oiticica: ambientes formados pela explosão do suporte bidimensional, e consequentemente pela autonomia dos planos cromáticos, suspensos no ar.

Com grande afinidade artística, apesar de discursos e posições ideológicas muito distintas, ambos formularam um espaço novo, mais generoso e democrático. Um ambiente que recusa o caráter fortemente determinado por limites e convenções a priori, e que se abre ao condicionamento intersubjetivo dos múltiplos usuários. Um lugar onde, como dizia Artigas a respeito da FAU, "todas as atividades são lícitas".

GUILHERME WISNIK, 42, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi curador da 10ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo.

FERNANDA BRENNER, 29, é artista plástica e diretora artística do espaço Pivô.


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