Folha de S. Paulo


Ponto Crítico - Livro - Uma biografia da perda

"On Elizabeth Bishop" (sobre Elizabeth Bishop, Princeton University Press, 2015) é um estudo acerca da vida e da obra da poeta americana (1911-79) feito pelo escritor irlandês Colm Tóibín –autor que participa de mesa na 13ª Flip, nesta quinta-feira (2).

O livro –ainda sem previsão de lançamento no Brasil– faz parte de uma coleção em que escritores escrevem sobre escritores, e é isso que torna singular o retrato de Bishop pintado por Tóibín.

Em relação a seu objeto, Tóibín às vezes se apresenta como biógrafo; às vezes, "racconteur"; outras, crítico literário –e essa variação de estilos e visões funciona em favor do leitor. O livro é uma delícia.

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A poeta americana Elizabeth Bishop
A poeta americana Elizabeth Bishop

Colm Tóibín travou conhecimento com a poesia de Elizabeth Bishop num feriado de Páscoa em Londres, no ano de 1975, quando tinha 19 anos. Gostou do tom sóbrio da linguagem e identificou-se com a geografia que ela descrevia. Além disso, eram ambos homossexuais e gostavam de viajar. Tinham em comum, também, nas palavras de Tóibín, uma longa prática de reter palavras, de não dizer coisas.

Nos 40 anos de sua relação com a obra de Bishop, Tóibín parece ter consolidado o entendimento de que o núcleo da identificação que os une deriva da experiência da perda e da dificuldade de falar sobre essa experiência.

Bishop perdeu o pai aos oito meses de idade. Sua mãe foi internada em um asilo psiquiátrico quando ela tinha cinco anos, e ela jamais voltou a vê-la. Tóibín, aos oito anos, em razão de uma doença paterna, foi mandado para a casa de parentes e ficou cinco meses sem notícias dos pais. Aos 12, perdeu o pai.

Para os dois, a noção de perda era reforçada pela própria geografia. Deixaram paisagens setentrionais semelhantes (Nova Escócia, no caso de Bishop; sudeste da Irlanda, no de Tóibín) para viver em exílio, sempre perto do mar. Dessa geografia, aprenderam que não existe garantia de bom tempo. A qualquer momento, tudo pode mudar.

O livro de Tóibín deixa claro como, nesse mundo de incertezas, Bishop quer fixar a experiência pela palavra. Para isso, a palavra não pode ser algo fácil, impensado, tem de ser precisa e fiel, porque define e transfere a experiência do mundo.

Tóibín aponta para o fato de que Bishop se comporta como se o universo íntimo do poeta não fizesse parte do poema. Ela fala sobre a paisagem (Rio de Janeiro, Nova Escócia, Key West) e descreve com fidelidade o circundante (um alce, um tatu, o jardineiro, o consultório de um dentista, uma viagem de ônibus, o mar).

Não há menção ao poeta, mas ele está lá, oculto. Ele é o que falta. É como se a dramaticidade dos poemas de Bishop fosse visível em negativo. A emoção está na contenção: nas vírgulas, nos silêncios e no espaço entre as palavras. Ela dá os contornos da perda pelo que está em volta.

Embora fale de si próprio e de autores como Thom Gunn e James Joyce, o foco de Colm Tóibín está sempre sobre Elizabeth Bishop. Para analisar seu objeto, ele viaja aos lugares em que Bishop viveu e comenta aspectos significativos de sua relação com mentores como os poetas Marianne Moore e Robert Lowell –seu melhor amigo– e de sua vida amorosa com a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares, com quem Bishop viveu "os 12 ou 13 anos mais felizes da vida".

Em seu estudo, Tóibín parece falar de uma irmã mais velha, que passou pelas mesmas agruras que ele e que, portanto, entende seu ponto de vista. Nossas visões coincidem, ele cita um poema de Bishop. É como se ambos assumissem um mesmo ponto de vista diante do pouco que a vida nos dá de seguro.

Tóibín oferece uma visão sobre como, para ele, a leitura de Bishop funcionou como afirmação e encorajamento tácito em sua formação como literato, e um dos pontos mais interessantes do livro é, justamente, permitir essa observação do escritor como leitor.

O livro de Tóibín é uma excelente introdução à poética de Elizabeth Bishop, que fala sobre poesia, mas que também fala da perda como catalisador da criação artística. Ao fazer isso e ao explorar a identificação de sensibilidades, Tóibín faz o que a poesia deve fazer: mostrar que somos únicos, mas que temos uma humanidade em comum.

ALEXANDRE VIDAL PORTO, 50, é colunista do site da Folha, diplomata e autor do romance "Matias na Cidade" (Record).


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