Folha de S. Paulo


Chris Burden e Ivens Machado se foram na mesma nuvem

RESUMO Dois artistas que, à primeira vista, parecem ter pouco em comum morreram em dias sucessivos no mês passado. Apesar das diferenças, tanto o brasileiro Ivens Machado quanto o americano Chris Burden produziram obras contundentes em que exploram situações ligadas ao corpo masculino, à sexualidade e à política.

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Estamos falando de dois artistas plásticos nascidos em meados do século 20, um na América do Norte e o outro na América do Sul. Ambos crentes e praticantes do caráter transgressivo da arte. Ao longo de suas carreiras, um estava armado da soberania do sucesso enquanto o outro batalhava pelo reconhecimento do seu valor.

Certa hora, ambos se depararam com um obstáculo inexorável chamado câncer, que a todos iguala. Um sucumbiu à ele, o outro conseguiu vencê-lo, mas tinha outro monstro no armário, chamado álcool. Ambos morreram em maio passado, um no domingo, 10, o outro na segunda, 11. Tinham, respectivamente, 69 e 73 anos de idade. Chris Burden e Ivens Machado, quem diria, foram na mesma nuvem. Era cedo para ambos.

A princípio, esse pensamento parece prepóstero –a pretensão de aproximar dois artistas, tão distintos em suas trajetórias, em reação à mera coincidência trágica. Burden e Machado não se conheceram pessoalmente nem expuseram juntos. Um primeiro olhar não revela similaridades nítidas em suas obras. No entanto é possível traçar analogias legítimas.

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"Trans-fixed" (1974), de Chris Burden

Burden e Machado foram agentes ativos da arte enquanto performance, tendo o corpo humano como assunto e veículo da obra. A genealogia de ambos desenvolve-se sobre a história da escultura, mas primeiro tomaram o comportamento do corpo como material, em tempo real ou em vídeo.

No âmbito histórico, formaram-se em meio ao conturbado quadro social e político dos anos 60 e 70: nos EUA, movimentos de massa pediam a liberdade sexual e a igualdade racial, enquanto no Brasil lutava-se pela liberdade sob a censura da ditadura militar. Entre 1970 e 75, Burden e Machado emergiram no circuito com uma intensa produção na qual se sentia, latente, o denominador comum do questionamento das formas de autoridade e do desafio aos limites.

Burden tomou um tiro em nome da arte em 1971 ("Shoot"), colocando-se na frente do atirador que atingiu seu braço esquerdo. Munido de provocação e vulnerabilidade desconcertantes, ele relegava poder absoluto ao outro. Uma referência à Guerra do Vietnã que assombrava o imaginário masculino nos EUA? A obra durou centésimos de segundos, mas reverbera através das décadas numa corrente de associações livres.

Em "Through the Night Softly" (1973), Burden rolou sobre um chão de cacos de vidro. O título lírico, "através da noite, suavemente", é pervertido em precisos sete segundos de dor e sangue numa ação filmada e depois veiculada como um anúncio de TV.

No mesmo ano, correspondendo (em frequência mais baixa) ao autoflagelo de Burden, Machado apresentou performance com o corpo inteiramente contido em bandagem cirúrgica, testando com a gaze outras conotações de privação e dor. No vídeo "Escravizador/Escravo"(1974), Machado –seu corpo ariano branco– atua com um ator negro, encenando tortura e dominação e arremessando referências críticas ao mal velado vernáculo racista nacional.

Antagônico e complementar, ainda nesse ano apresenta o vídeo "Versus", no qual o corpo branco aproxima-se do preto, sugerindo a fusão dos dois. "Versus" chegou a ser censurado por (talvez) aludir a um beijo homossexual.

Em "Trans-fixed" (outra obra de 1974), Burden concebeu sua própria crucificação com pregos prendendo suas palmas ao teto de um fusca. O motor do carro foi acelerado a toda velocidade por dois minutos –"gritando por mim", na definição do artista.

Machado gritou de forma menos hiperbólica mas não menos assombrosa. Apresentou no Museu de Arte Moderna do Rio a "Cerimônia em Três Tempos" (1973) –três mesas capengas de azulejos brancos desmoronando sob o simulacro de uma grande coxa de carne que pendia de um gancho do teto–, narrativa violenta enunciando, entre outras leituras possíveis, o páthos da ditadura.

ESCULTURA

Machado migrou do território desmaterializado da performance para a escultura antes de Burden, que só o fez no final dos 70. A partir daí, seus trabalhos seguiram vetores assimétricos, o erotismo nominando o primeiro, e a bravura, o segundo. Mas ambos seguiram autores e atores em manifestações físicas com significados e efeitos perturbadores.

Em "Consolador/Dildo"(1979), Machado nos aflige com uma forma roliça revestida de grossos cacos de vidro, típicos dos muros de casas brasileiras. Nesse mesmo ano fez "Mapa Mudo", escultura em concreto com o formato do mapa do Brasil cravejado de cacos de vidro, uma obra-prima que salta da forma para o mais contundente argumento político. Ao longo dos anos 80 e 90, construiu formas estranhas de concreto, pigmento, pedras, ferro. Machado dizia que construía o visível e que "o estranhamento que causam deve ser relativo à nossa própria estranheza".

Já Burden canalizou o espírito Houdini de desafio mortal de suas primeiras obras para proezas técnicas em escalas imponentes.

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Escultura sem título (1988), de Ivens Machado
Escultura sem título (1988), de Ivens Machado

Se primeiro ele expôs seu próprio físico, mais tarde colocou à prova outros corpos. "Samson" ("Sansão", 1985) é uma obra meio escultura, meio performance constituída de um macaco mecânico entre duas grossas toras, ligado a uma catraca na entrada do espaço expositivo. Cada vez que o fluxo de pessoas impele a catraca, ela faz com que as toras empurrem as paredes, testando o limite da engenharia do prédio, potencialmente destruível pela engenhoca.

Em "Beam Drop"(1984/2008), aproximadamente 60 vigas de aço usadas na construção civil são jogadas verticalmente de um guindaste sobre uma vasta cova de cimento molhado. A gravidade imprime sua força dramática, e as vigas se fixam em ângulos aleatórios dentro do concreto, formando uma gigantesca escultura.

A sublimação sexual é marcada nas formas de Machado, assim como no coito das vigas penetrando cimento adentro de Burden (a obra hoje está na coleção do Instituto Inhotim, assim como "Sansão"). O limite físico de Burden e o psicológico de Machado, ou vice-versa. Os limites são transmutáveis.

"'Limites' é um termo relativo. Como 'beleza', está frequentemente nos olhos do espectador", disse Burden. O caráter extremo permeia as obras dos dois artistas, ainda que Machado se apegasse mais às impressões sensórias, e Burden, ao espetaculoso.

Burden praticava a figuração direta, usando uniformes policiais, carros, guindastes, submarinos, arranha-céus e até barras de ouro. Exercitando um imaginário de TV americana, produziu esculturas que imprimem fortes imagens narrativas. Um escultor cinemático.

Já a obra de Machado fala mais ao instinto selvagem. Ele materializava a forma sem floreá-la excessivamente de significações. A forma em si parece falar, como se suasse algo que o espectador absorve. A escultura transpira.

Uma escultura sem título de 1988, de concreto e pigmento, pendente de um cabo de aço na parede, apresenta cor de língua e superfície áspera de cuja ponta brotam pedras pontiagudas. Remete ao pênis, ao saco escrotal. Uma obra que opera como síntese e como metáfora.

Ao longo dos últimos 15 anos, Burden produziu peças de alumínio e blocos de concreto típicos de módulos de brinquedos para replicar cada parte de famosas pontes, resultando em obras que são como as pontes em forma condensada.

A prática de acumulação e repetição ecoa na obra de Machado no mesmo período, quando empregou toneladas de toras de madeira e pedras em trabalhos de notória força poética, alguns em escala ambiciosa. Enquanto Burden explorou a indústria, Machado voltou-se para a terra –explorou o peso da pedra, construiu elevações de toras como ocas espiraladas e grandes rodas recheadas de cimento.

Burden praticava o domínio dos elementos em sua obra, enquanto Machado empregava materiais que fugiam ao controle absoluto.

Tanto Burden como Machado são produtos da própria cultura. Um respondia à matéria-prima e à instabilidade, o outro à indústria e à riqueza. No entanto, transparece nas produções de ambos o gênero masculino que as construíram. Sente-se o pulsar da testosterona nas obras. Ambos produziam arte de macho. Eram garotos em uma clássica relação física com o mundo, olhando para coisas de menino como os materiais de construção.

Burden morreu em sua casa em Los Angeles. Deixou em cartaz uma mostra de novas obras na filial de Paris da poderosa franquia Gagosian Gallery –a exposição foi estendida até 19 de setembro. Lá está, entre outros trabalhos de grande escala, o impressionante "Porsche with Meteorite"(2013), no qual um automóvel Porsche e um meteoro estão suspensos, em um equilíbrio tenso e tênue, por uma balança industrial.

Machado morreu em sua casa no Rio. Não exibia obra nova desde 2010, embora tenha participado de exposições esparsas, incluindo uma coletiva na também poderosa Hauser & Wirth, em Zurique. Morreu deixando sua arte desvalorizada, em estado de semiabandono.

Burden partiu reconhecido, influente e imitado. Machado estava na pior, ainda que também influente e imitado. Dois escultores, um tecnológico, um orgânico. Um meio pop, outro meio "povera". Ambos de qualidade superior –dois dos melhores que se foram.

MARCIA FORTES, 47, é sócia-fundadora da galeria Fortes Vilaça. Trabalhou como jornalista, tradutora, crítica e curadora de arte antes de se tornar galerista.


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