Folha de S. Paulo


Leia trecho do livro-reportagem "Devoradores de Sombras"

RESUMO Em 2000, o correspondente em Tóquio do jornal britânico "The Independent" cobriu a morte da jovem inglesa Lucie Blackman, hostess num bar da cidade. Em livro-reportagem a sair no fim do mês pela Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha, reconstrui não só o crime mas a vida da vítima e a do algoz, o nipo-coreano Joji Obara.

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Lucie Blackman e Louise Phillips nasceram no mesmo ano, frequentaram a mesma escola, gostavam das mesmas músicas e roupas e moravam a 20 quilômetros uma da outra. Uma coisa as dividia, algo insignificante para as duas amigas, mas que se refletia nos julgamentos e nas percepções dos outros: a fratura invisível que separa as classes sociais inglesas.

A família Blackman –educada em escolas privadas, com filhos de empresários, moradora da requintada cidade de Sevenoaks–falava com sotaque dos arredores de Londres. A pronúncia de Louise a identificava como filha da classe trabalhadora do sudeste de Londres. Seu pai era um construtor de sucesso que instalou a família numa grande casa no vilarejo de Keston, em Bromley, na Grande Londres. Sua morte aos 51 anos foi um golpe terrível para a segurança financeira e ascensão social da esposa e das filhas ainda jovens. Louise só frequentou o Walthamstow Hall graças a uma bolsa de estudos. Isso, aliado ao seu sotaque, logo a separou das outras garotas. As mais esnobes se referiam a ela como "garota de rua".

Alguém com personalidade diferente teria sido esmagado por esse esnobismo, porém Louise o encarava com provocação e desprezo. Ela não tinha medo dos ataques de intimidação; na escola, encarava quem maltratava Lucie da mesma maneira que quem a maltratava. Adolescente, era audaciosa e aventureira. Enquanto os outros colegas de Lucie saíam para beber nos pubs de Sevenoaks, Louise a levava para bares e clubes sofisticados e mais emocionantes em Camden e no sul de Londres. A família Blackman tratava Louise com carinho, mas ela sabia que não tinha sua aprovação e que era vista como má influência para Lucie. Se as duas ficavam muito tempo na rua ou até muito tarde, era Louise –sentia Lucie– que acabava levando a culpa pelas transgressões das quais Lucie participava ativa e desejosamente.

Louise conhecia muito bem as inseguranças de Lucie e acompanhou de perto as consequências da separação e do divórcio dos pais dela. Em relação a Tim, seu sentimento era de antipatia, em parte porque ele não a aprovava, mas também por achar que ele tinha o hábito de destruir a autoconfiança de Lucie com comentários fortuitos e críticos sobre seu peso ou aparência. Ela sabia que Lucie raramente se sentia confiante com a própria aparência e parecia triste quando Louise deixava os homens estarrecidos com sua beleza. Louise, porém, também tinha vulnerabilidades profundas.

A morte do pai a afetou terrivelmente. Durante anos ela lutou com uma desesperança autodestrutiva que se manifestava numa anorexia nervosa. Foi Lucie, mais do que ninguém, que a ajudou nesse período doloroso. Era isto que as pessoas não entendiam na amizade das duas –o tanto que Louise dependia de Lucie e o tanto que a idolatrava, com seu talento para línguas, desenho e culinária, sua lealdade e seu senso de humor.

O projeto inicial de Louise era ir sozinha para o Japão. Ela ficou felicíssima quando Lucie concordou em ir também e até pagou metade da sua passagem. Mas Louise ressalta que não pressionou a amiga. A mudança para Tóquio se encaixava num padrão estabelecido desde a escola –Lucie sempre seguia os passos de Louise. Ela queria ir e tinha muito do que fugir.

"As dívidas realmente a incomodavam demais", disse-me Louise muito tempo depois. "Ela acordava no meio da noite preocupada. Precisava de uma solução rápida. Não conseguia ver outra maneira de pagá-las a não ser depois de anos e anos. Acho que ela se sentia culpada por se afastar da mãe. Não que ela quisesse fugir de Jane. Ela queria não ter preocupações, queria conseguir viver como uma garota de 21 anos. Jane não queria que ela viajasse, não por pensar que aconteceria alguma coisa ruim. Quer dizer, Jane acreditava nisso, mas basicamente ela só não queria ser deixada para trás."

TENSÃO As primeiras semanas em Tóquio foram desorientadoras para as duas, porém mais difíceis para Lucie. Seu fracasso em se dar bem como hostess e o sucesso de Louise provocaram uma tensão incomum na amizade delas, embora ninguém tenha falado nada. Em junho, entretanto, algo mudou. "Emocionalmente, o primeiro mês foi difícil, em vários aspectos, para nós duas", escreveu Louise um dia. "Mas desde ontem me sinto mais próxima de você do que nunca, acho. Você é realmente minha alma gêmea, conhece coisas minhas que ninguém mais conhece, vê em mim o que os outros não veem. Basta você entrar no quarto para perceber meu humor num instante."

Quando acordaram tarde no sábado, dia 1º de julho, as amigas estavam cheias de otimismo. Lucie, finalmente, começara a formar uma lista de clientes regulares. Louise havia feito as pazes com Côme, seu namorado francês, depois de uma briga. Na noite anterior no Casablanca, as duas se sentaram com dois jovens executivos muito agradáveis chamados Yoshida e Tanaka, que concordaram em levá-las para um "dohan" duplo na semana seguinte.

Elas saíram do clube às 2h30, pegaram um táxi juntas e ficaram até as quatro da manhã na cozinha tomando chá e comendo torradas com manteiga. "Estávamos tão animadas", disse Louise. "'Conseguimos',pensamos. Estávamos lá havia dois meses, recebíamos às segundas-feiras e estava indo tudo bem. A sensação era de que a gente tinha superado uma fase péssima e que tudo ficaria melhor."

Foi num sábado à tarde que Lucie saiu de casa pela última vez. Na segunda-feira de manhã, Louise procurou a polícia e à tarde recebeu o estranho telefonema. Mas foi apenas no final da noite de segunda, mais de dois dias depois do desaparecimento de Lucie, que Louise foi capaz de comunicar o que tinha acontecido a alguém da família Blackman. Era o meio da tarde na Grã-Bretanha; Jane estava em casa quando recebeu o telefonema, prestes a ir ao correio para despachar um pacote de doces e guloseimas para Tóquio. Mesmo sabendo que Lucie havia chegado ao Japão em segurança, ela continuava inconsolavelmente tensa; essa notícia, a confirmação de todos os seus medos, arremessou-a para dentro de uma tormenta de pânico e terror. Sophie e Rupert foram chamados imediatamente para a pequena casa em Sevenoaks, Val e Samantha Burman apareceram em seguida, e Jamie Gascoigne veio de Londres assim que soube da notícia.

A informação era impossível de digerir. Não só Lucie estar desaparecida, mas também os estranhos detalhes que Louise havia recontado pelo telefone, com a voz entrecortada por lágrimas: "Novo Movimento Religioso", "treinamento", "Akira Takagi" e "Chiba" –o que quer que tudo isso significasse.

"Foi um pandemônio completo em casa", disse Rupert Blackman, na época um estudante de 16 anos.

"Minha mãe parecia uma galinha decepada. O que você faz quando alguém desaparece no Japão? Ninguém sabia o que fazer. Entrei na internet e comecei a procurar por 'Novo Movimento Religioso'. Entrei em contato com meu antigo professor de judô para pedir um conselho, por causa da ligação dele com o Japão. De repente você é tomado por alguma coisa, é como se começasse a flutuar, chegasse lá em cima e começasse a olhar para baixo para encontrar a pessoa, como uma agulha no palheiro mesmo. É muito estranho. Nunca vou conseguir expressar o que senti. A sensação de perder alguma coisa já é muito ruim. Porém, quando você perde alguém, é terrível. Perder alguém dentro de um shopping é uma coisa, mas perder alguém em outro continente –a gente não sabe por onde começar. Não conhece ninguém lá; é uma cultura totalmente diferente. Foi o pior lugar do mundo onde isso poderia ter acontecido."

Quando começou a absorver a notícia, Jane telefonou para a casa de Tim, na ilha de Wight. Ele estava sentado no quintal, curtindo o sol no final da tarde. Foi a primeira vez que se falaram depois do divórcio. Há duas versões dessa conversa: a dela e a dele.

JANE: Tim, Tim, é a Jane. Aconteceu uma coisa horrível "" a Lucie desapareceu.

TIM: Bom, não sei o que você espera que eu faça.

JANE: Nossa filha desapareceu no Japão. Você não pode... Não pode ir até lá e trazê-la de volta?

TIM: Tenho certeza de que o Ministério das Relações Exteriores e a polícia já estão cuidando disso. Não podemos fazer mais nada além do que eles estão fazendo.

JANE: Mas, Tim...

TIM: Olha só, eu estou no meio de um churrasco. Tchau.

JANE: Ah, Tim, não acredito...

TIM: Vá à merda.

Ele desliga.

JANE: Lucie desapareceu! Você tem que fazer alguma coisa!

TIM: Uau, espere aí, um segundo"¦ É a Jane? Fica calma, Jane. O que aconteceu?

JANE: Nossa filha desapareceu no Japão! Você precisa ir até lá e trazê-la de volta!

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TIM: Como assim, desapareceu? O que aconteceu exatamente? Tente se acalmar...

JANE: Seu safado! Eu já disse, ela desapareceu, seu merda. Você não vai, não é?

TIM: Jane, eu... não posso decidir isso em oito segundos. Tem muita coisa envolvida. Me fale de novo o que aconteceu. Estou fazendo um churrasco e...

JANE: Seu filho da puta! Alguma coisa horrível aconteceu com a nossa filha! Você não se importa com mais ninguém, não é?

Ela desliga.

Então Sophie disse que viajaria para Tóquio no dia seguinte; Jamie Gascoigne iria com ela. "Sabemos que ela está em Chiba, então vou até lá encontrá-la", disse à mãe. "Se ela foi raptada por auma seita religiosa, eu me ofereço para ficar no lugar dela. Vou trazê-la de volta para casa."

RICHARD LLOYD PARRY, 45, é escritor e jornalista, editor para a Ásia do jornal britânico "The Times".

ROGÉRIO BETTONI, 37, é tradutor.


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