Folha de S. Paulo


Yoko Ono, o conceito. A resenha da mostra no MoMA de Nova York

Partindo do princípio de que imaginar uma coisa pode fazê-la virar realidade, Yoko Ono se deu uma exposição solo no Museum of Modern Art em 1971. Qual era a probabilidade de o museu ter tido a ideia por conta própria? Praticamente nenhuma. Historicamente, as mulheres ganhavam pouca exposição no museu; mulheres não brancas, nenhuma. Outra coisa: quase todo o trabalho de Ono ocupava uma margem do mundo das artes muito distante da ortodoxia na qual, para seu custo e nossa boa sorte, ela optou por permanecer, pelo menos em seus primeiros anos.

Existem evidências palpáveis daquela mostra sola no MoMA. Há fotos de Yoko Ono com seu trabalho no Jardim de Esculturas do museu. Há recortes de jornal de anúncios da mostra, há até algumas críticas. Mas descobrimos que as "críticas" não passam de comentários colhidos de visitantes. A foto no Jardim de Esculturas é uma coisa feita com recursos para cortar e colar. A mesma coisa se aplica a uma imagem promocional de Ono, vista em pé do lado de fora do museu, sob um toldo com o nome da instituição. Yoko carrega uma sacola grande de compras com a letra "F" impressa. Ela posiciona a bolsa perto da letra "A" de "Art".

E o conteúdo da suposta mostra? Parece que houve apenas um trabalho: uma garrafa contendo um enxame de moscas que Ono afirmou ter banhado em seu perfume favorito e solto no jardim do MoMA, a partir do qual as moscas se dispersaram dentro do museu e pela cidade. A tarefa do amante da arte era rastrear as moscas, algo que exigia que ele olhasse cuidadosa e atentamente a tudo, a prédios espalhados por toda a cidade, aos transeuntes, ao lixo nas ruas. E exigia que ele mantivesse todos seus sentidos em alerta: para ouvir o som revelador de um zunido, cheirar um perfume passageiro ou sentir as patinhas das moscas pousando sobre sua pele.

Desse modo, alguma coisa que começou como ficção, como gesto político, uma gag que ironizava as pretensões e exclusões institucionais, tornava-se potencialmente outra coisa e algo mais: a proposta de que a arte é um estado de atenção aguçada que se infiltra na vida e a incrementa. A ficção exerceu algum efeito na época? É difícil dizer. Mas hoje, mais de 40 anos mais tarde, tornou-se realidade na mostra "Yoko Ono: One Woman Show, 1960-1971", que abre no MoMA no domingo.

Organizada por três dos curadores do museu –Klaus Biesenbach, Christophe Cherix e Francesca Wilmott–, a mostra é essencialmente uma exposição de arquivo. Repleta de objetos e filmes e incrementada por uma trilha sonora, ela consiste principalmente em trabalhos sobre o papel. E a maioria deles traz palavras, sendo um exemplo excepcional as 151 fichas datilografadas à mão que, em 1964, formaram "Grapefruit: A Book of Instructions and Drawings".

O livro, que é provavelmente o trabalho mais conhecido de Yoko Ono, começou de modo pouco auspicioso. Yoko o compilou a partir de manuscritos acumulados e o autopublicou no formato mais barato possível. Na época, a reputação dela ainda era restrita a um pequeno círculo de artistas, escritores e músicos de vanguarda de Nova York e Tóquio. Embora o que ela estivesse fazendo com linguagem e ideias no livro fosse radical, um tipo de trabalho que mais tarde daria fama a artistas conceituais como Joseph Kosuth e Lawrence Weiner, Yoko mal conseguia dar exemplares do trabalho de graça.

Tudo isso mudou alguns anos mais tarde. Em 1970 "Grapefruit" foi republicado pela Simon & Schuster com introdução de John Lennon, que tinha se casado com Yoko no ano anterior. Virou um sucesso, uma obra que passou instantaneamente a constar das bibliotecas de estudantes universitários. Mas com frequência era tratado mais como um objeto por si só que como um livro para ser lido. E, quando era lido, era lido de modo equivocado. Com seus textos do comprimento de haicais que orientavam o leitor a realizar alguma ação gnômica, o livro muitas vezes era interpretado como bobagem pseudo-zen, fruto de uma mente chapada.

Era engano. "Grapefruit" é um texto fibroso, belo e límpido, seriamente especulativo, intimista como um diário. Ele possui uma dose de humor dadaísta, como se vê na sugestão de que o leitor "ande por toda a cidade com um carrinho de bebê vazio". E há o lirismo de um poeta natural, algo que Yoko é -"grave uma fita do som da neve". Mas o tom geral é um misto indefinível de claro e escuro. Uma anotação que começa com "Imagine mil sóis no céu ao mesmo tempo" e termina com "Faça um sanduíche de atum e o coma" é como uma visão do apocalipse pontuado por uma um tombo sobre o próprio bumbum.

Então temos:

"Quando uma pessoa o fere fundo
alinhe cem vidraças no campo
e atire uma bala por elas.
Faça uma cópia de um mapa traçado
pelas fendas de cada vidraça e
Envie o mapa por cem dias
à pessoa que o magoou"

E isto:

"Esconda-se até todos irem para casa.
Esconda-se até que todos se esqueçam de você.
Esconda-se até todo o mundo morrer."

Espinhoso e marcado pela dor (o primeiro trabalho na exposição no MoMA é uma maçã posicionada sobre um estende de acrílico, onde ficará até apodrecer), o livro pode dizer coisas violentas em um tom que não se deixa perturbar; pode soar ao mesmo tempo animado e desolado. Ler o texto datilografado por inteiro, instalado em sequência sobre uma parede comprida do museu, leva um pouco de tempo, mas vale muito a pena. É uma experiência fascinante e uma introdução útil ao clima subjacente a boa parte do resto da mostra.

Yoko Ono nasceu em Tóquio em 1933. Aos 12 anos de idade, viu a cidade ser bombardeada e nivelada. Ela cresceu em um ambiente de conforto e cosmopolitismo: seu pai era banqueiro, sua mãe era de família aristocrática. Sua mãe era budista, e seu pai, cristão. Depois da guerra, ela se mudou com eles para os Estados Unidos, morou na suburbana Westchester County, Nova York, e cursou o Sarah Lawrence College, onde escreveu poesia e estudou filosofia.

Em termos de seu temperamento, ela se sentia fora de sintonia, onde quer que estivesse.

Quando Yoko deixou a faculdade para se casar com o compositor experimental Toshi Ichiyanagi, seus pais cortaram relações com ela. Ela e seu marido foram viver em Manhattan, numa comunidade de vanguardistas do downtown. John Cage era o líder do grupo, e George Maciunas, uma força organizacional em ascensão. A arte conceitual, que privilegiava as ideias sobre as coisas, estava sendo inventada. Yoko exerceu papel fundador em sua criação, inicialmente ao promover concertos e apresentações de dança no loft na rua Chambers que dividia com Ichiyanagi e depois com sua própria produção transdisciplinar.

Com sua primeira exposição numa galeria de Nova York, em 1961, Yoko começou a derrubar pouco a pouco as separações entre arte e vida, artista e plateia, criando pinturas compostas a partir de sombras lançadas e outras que o espectador podia complementar ou podia caminhar sobre. Uma viagem ao Japão no ano seguinte converteu-se em uma estadia longa e fértil. Ali ela desenvolveu alguns dos trabalhos vocais extraordinários -ululantes, chorados, infantis, eróticos-que são tocados na exposição e que acabariam por transformar o som da música pop, como atestam as carreiras de cantores contemporâneos como Bjork, que tem uma mostra simultânea no MoMA.

No Japão, Ono apresentou sua primeira mostra composta exclusivamente de textos, e foi ali que estrearam algumas de suas performances mais radicais. Uma delas era "Cut Piece", na qual Yoko se ajoelhava sobre um palco vazio, colocava uma tesoura de alfaiate à sua frente e orientava a plateia a ir cortando suas roupas. A performance, que ela apresentou pela primeira vez em 1964, abriu o caminho para artistas performáticas mais jovens, como Marina Abramovic, se colocarem em posições nas quais podiam ser fisicamente tocados ou agredidos pela plateia.

De volta a Nova York, agora casada com o artista Anthony Cox e integrante de uma rede de conceitualistas conhecida como Fluxus, Yoko produziu filmes e objetos de interesse apenas mediano: coisas interativas, como o espelhado "Box of Smile" (caixa de sorriso), que podia ser segurado na mão, e o poético "Glass Keys to Open the Skies" (chaves de vidro para abrir o céu). Com sua ousada arte efêmera anterior agora espalhada e semiesquecida, seu trabalho ganhou fama de ser obra do capricho, fama essa da qual nunca se livrou por completo.

Em 1966, suas circunstâncias mudaram. John Lennon visitou uma mostra que Yoko preparava em Londres e gostou do que viu. Os dois se tornaram um casal colaborador. Os projetos concebidos conjuntamente, como a campanha de paz de 1969 deles, com suas "bed-ins" (quando passaram dias na cama) e seus outdoors anunciando "War Is Over! (If You Want It)" (A guerra acabou! [se você quiser]), foram sobretudo frutos da sensibilidade de Yoko. Lennon, por sua parte, incentivava e promovia o trabalho vocal dela. (Uma sala dedicada a materiais da Plastic Ono Band documenta o fato.)

De maneira mais ampla, contudo, a posição de Yoko como esposa de John Lennon lançou sombra sobre sua carreira independente. E, o que era pior, a converteu em alvo natural da misoginia e do racismo contra os quais ela sempre se insurgiu. Seus papéis subsequentes, assumidos com honra, de viúva de uma celebridade e porta-voz política, tenderam a limitar a variedade e reduzir o impacto dos trabalhos artísticos novos que ela fez nas décadas recentes, envolvendo-as em uma aura dos anos 1960.

Justin Lane - 12.mai.15/Efe
A instalação
A instalação "Apple" na mostra "Yoko Ono: One Woman Show, 1960-1971" no MoMA

Essa impressão é combatida pelo trabalho mais recente da mostra, datado de 2015. Encomendado pelo MoMA e intitulado "To See the Sky" (para enxergar o céu), trata-se de uma escada de aço em espiral situada em um vão aberto e que conduz ao alto para algo que eu nunca antes tinha notado: uma claraboia de vidro transparente no telhado da galeria do sexto andar do museu. O céu, ilimitado e em constante transformação, que nos nutre e nos destrói, sempre foi uma das imagens centrais da arte de Yoko. Visto através da claraboia na galeria, forma um objetivo atraente a ser alcançado com a escalada.

Mas algo intimidante acontece quando você chega ao topo da escada. A estrutura começa a balançar, como um navio oscila no mar revolto. Torna-se difícil olhar para o céu; seu instinto lhe manda voltar sua atenção para onde estão seus pés. Mesmo depois de ter descido, você leva um minuto para sentir-se firme outra vez. Assim, no momento em que pensou que ganharia um pouco de transcendência, de limpidez, você recebeu um cutucão de alerta, uma pequena dose de medo, algo para lembrá-lo que buscar a luz encerra perigos; que o perigo sempre está por perto. E essa é a mensagem que esta artista imaginativa, intransigente e ainda subestimada vem nos passando há anos.

Tradução de CLARA ALLAIN


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