Folha de S. Paulo


Anotações sobre uma doença fatal

RESUMO Crítico de arte britânico reuniu em livro, sem autocomplacência, um diário da evolução de um tumor cerebral que lhe tiraria o domínio da linguagem e que terminaria por matá-lo, em 2011. Anos mais tarde, sua viúva, artista e professora, escreveria um segundo livro, premiado, sobre sua vida diante da doença dele.

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"Seria concebível que pessoas nunca falassem uma língua audível, entretanto, falassem uma língua para si mesmos, na imaginação?", inquire Wittgenstein.

Diante da certeza de morrer em breve, um autor decide escrever sua última obra, contando como é lidar com a doença e com a morte. Sua capacidade de usar a linguagem, no entanto, é diariamente atacada pelo problema de saúde que lhe ceifará a vida. Esse foi o dilema enfrentado de forma sóbria e comovente pelo crítico-chefe de arte do jornal britânico "The Independent", Tom Lubbock, ao construir o diário de seu fim.

Não existe cura para o glioblastoma multiforme, tumor que se instalou no lobo temporal esquerdo do cérebro do jornalista em setembro de 2008, quando tinha 51 anos. Os tratamentos no máximo servem para que o paciente ganhe mais tempo de vida, o que poucas vezes ultrapassa um par de anos.

No caso de Tom, as células cancerígenas atacaram justamente a parte do cérebro responsável pelas funções de fala e de linguagem. Enquanto seu vocabulário minguava de forma súbita e precoce, o de seu filho Eugene, de 18 meses à época do diagnóstico, florescia como o de todas as crianças saudáveis. Coube a Marion Coutts, artista, mulher de Tom e mãe de Eugene, o cuidado diário com essas duas trajetórias tão distintas.

É corriqueiro que, ao descrever alguém acometido pelo câncer, se use a expressão "lutar contra a doença". A contenda de Lubbock, no entanto, era outra. Foram batalhas diárias para que sua comunicação com o mundo continuasse a fazer sentido, na escrita e na fala.

Em relação à doença, o jornalista manteve lucidez e resignação espantosas, como mostra o livro "Until Further Notice, I Am Alive", [Granta, R$ 40,50 em e-book, na Amazon.com.br; edição americana pela Taunton, 160 págs., R$ 79,10 sob encomenda na Livraria Cultura] –algo como "até segundo aviso, estou vivo", que recolhe seu diário de agosto de 2008 até outubro de 2010, quando as palavras já lhe faltavam de maneira significativa.

Ele abre o livro, publicado em 2012, de forma impactante: "A notícia era a morte. E não seria 'talvez com boa sorte dê para superar'. Era, em definitivo, a morte, e muito em breve, coisa de alguns anos. O que, de cara, não parecia tão ruim".

A morte, para Lubbock, não seria uma questão de derrota pessoal, razão pela qual descartava e se ressentia daqueles que lhe ofereciam a rota exaustiva dos esforços e tratamentos alternativos possíveis para prolongar sua vida.

O crítico tampouco procurou preencher sua vida apenas com prazeres e novas experiências, como se aproveitasse ao máximo o tempo que lhe restava. Em sua opinião, não haveria nada que pudesse compensar o próprio encurtamento de sua vida normal.

Preferiu um caminho mais sereno: "Encarar o inevitável quando ele chegar, confiando na medicina, torcendo pelo melhor, reconhecendo o que há de bom na minha vida pelo tempo que ela vier a ter". Enquanto foi possível, por pouco mais de dois anos, Lubbock continuou a escrever artigos semanais sobre arte para o "Independent". Por mais esforço que tivesse de fazer durante o processo, o resultado final tornava imperceptível seu sofrimento para os leitores.

Há até mesmo algum humor em seu diário. Em dado momento, Lubbock descreve três tipos irritantes de simpatizantes: aqueles que só o visitam para ficar com a consciência tranquila; os que conhecem alguém que tem exatamente o mesmo tipo de doença, e que está ótimo agora; ou o grupo que só deseja contar que eles sabem o quão terrível tudo é –ainda mais com um filho tão pequeno!

Mais adiante, Tom discorda de uma pessoa que lhe diz que é preciso viver no presente. Relembra, então, uma exposição em que mostravam uma experiência com Clive Wearing, músico e ex-funcionário da BBC que, após um vírus no cérebro, passou a conviver com uma rara forma de amnésia.

No diário de Wearing, na entrada de 21 de abril de 1990, repete-se, com diversas variações, a mesma mensagem: "Agora estou quase completamente acordado", "agora estou realmente acordado". A amnésia o faz viver num eterno instante presente. "Da próxima vez que alguém lhe disser que é preciso tentar viver no presente, você saberá o que isso significa", escreveu Lubbock.

MEMÓRIAS

O cotidiano de sua família, a intensa vida social com amigos e um relato detalhado de suas crises nesse período, no entanto, não estão no diário de Lubbock, um registro que se torna compreensivelmente cada vez mais sucinto; para tanto, é melhor acompanhá-lo do livro de memórias escrito por Coutts, sua viúva.

"The Iceberg" [Atlantic Books, R$ 17,49 em e-book, na Amazon.com.br] foi publicado no ano passado no Reino Unido, mais de três anos após a morte de Lubbock, em janeiro de 2011, e teve ótima acolhida crítica. Foi finalista do prêmio Samuel Johnson na categoria não ficção, e recentemente conquistou o Wellcome Book Prize, para publicações relacionadas a medicina, saúde e doença.

Lado a lado, esse par de diários é uma mostra de como o amor prospera mesmo diante de tantas adversidades –e da certeza do fim iminente. Se Lubbock lamenta o fato de não haver um manual para lidar com a morte, Coutts se inquieta com as dúvidas sobre a continuidade da sua vida ao lado do filho, sem o marido por perto.

Nenhum dos dois era muito jovem quando se conheceram, em 1996, em um jantar na casa de amigos –e Coutts revela no livro que não tinha muita vontade de participar do encontro. O casamento aconteceu em 2001, e o filho nasceu em 2007, quando ela tinha 42 anos. Maduros, acreditavam que a vida a dois –e a três– era muito melhor do que todas as aventuras que já tinham vivido antes.

Ler o diário de Coutts é um exercício de imersão em dor. A experiência foi devastadora para a professora de arte da universidade londrina Goldsmiths, que tinha de lidar com a frieza dos sistemas de saúde e assistência social do Reino Unido, com um filho que acabara de entrar na creche e com um marido perto da morte. Seu físico chega perto do esgotamento, e sua sinceridade é lacerante.

Coutts não esconde do leitor, por exemplo, que, em uma visita ao museu nacional dos trilhos de ferro, exausta por ter de acompanhar o pequeno e incansável Eugene, deixa escapar em voz alta que desejava morrer naquele momento –ao que o filho, com doçura, responde: "Não, mamãe, não morra".

Trata-se de um deslize, é claro, pois ela foi firme nas três tarefas a que se propôs: "1. Não deixar Tom ser destruído antes de sua morte, mas ajudá-lo a viver plenamente de seu próprio jeito e com toda sua força. 2. Não deixar Eugene ser destruído pela morte de Tom, mas ajudá-lo a viver plenamente e com toda sua força. 3. Não deixar que eu seja destruída. Ver 1 e 2. É isso. O projeto é não desabar".

Quando as palavras somem, Coutts ajuda a interpretar o que Lubbock deseja comunicar e conta ao leitor sobre esse processo.

"O jeito como seu intelecto se manifesta pela linguagem está sendo destruído. Grandes partes da fala estão desmoronando. Buracos estão aparecendo. Avenidas se desfazem, e súbitos bloqueios de ruas impedem a jornada de uma parte da consciência para a outra. Ele amarra palavras uma à outra como cordas sobre o vazio. Ele é um mestre do improviso, um artista do equilíbrio entre pensamento e palavra. Otimismo, conteúdo, publicação, orquestra, escada. Ontem essas palavras estavam perdidas e não podiam ser convocadas ou ditas. Ele as recuperou hoje por tentativas atentas, mas será que elas se perderão de novo?"

Perdidas essas e outras palavras com o agravamento do tumor, mesmo apesar de duas cirurgias e de duas experiências com rádio e quimioterapia, Coutts e Lubbock se comunicam com auxílio de expressões-muleta e em jogos de adivinhação que a esposa domina com mestria.

"De um jeito, mas não de outro" significa que o jornalista consegue pensar sobre algo, mas não expressar. "De um jeito diferente" é seu modo de dizer que entende tudo o que as pessoas ao redor estão falando. O nome do filho passa a ser o único que ele reconhece. Para se referir à esposa, Lubbock diz: "Eugene perto disso".

Ao fim, é Coutts quem oferece a resposta à inquietação de Wittgenstein: "Quando você não puder mais falar nada, Tom, você ainda terá a si mesmo e a todas as reservas do seu cérebro e da sua consciência como companhia, e porque você é você e eu sei o que isso significa, eu sei que você terá o mundo inteiro dentro de você, e você estará perfeitamente bem".

RODRIGO RUSSO, 29, é jornalista da Folha.


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