Folha de S. Paulo


Ponto Crítico - O país levado a sério

Um filme brasileiro sobre a Segunda Guerra? Confesso que não estava totalmente desarmado quando fui ver "A Estrada 47", de Vicente Ferraz. Parecia haver algum exagero nos elogios da crítica, e um épico nacional, rodado nas montanhas da Itália, sempre será uma empreitada de alto risco.

Depois de uma cena filmada muito de perto, com soldados brasileiros no escuro, amedrontados, encolhidos não se sabe bem em que posto, do qual terão de sair, ou no qual terão de ficar até a morte –tudo é confuso nesse começo da narrativa–, comecei a identificar o "truque" do filme.

Pelo menos, meu "pressuposto crítico" foi mais ou menos assim: "O diretor está fazendo um filme sobre a Segunda Guerra a partir da nossa experiência com as UPPs".

"Esses pracinhas na Itália reproduzem a situação vivida pelos policiais cercados naquele filme sobre o morro do Alemão, de José Eduardo Belmonte. Estão presentes o mesmo pavor e a mesma necessidade de enfrentar o inimigo sem a certeza hollywoodiana da vitória final."

Essa hipótese era incorreta. Minha desconfiança, em todo caso, não se dissipava. Conforme os créditos de "A Estrada 47" iam aparecendo, entre belas imagens de céu, neve e arame farpado, preparei meu segundo plano de ataque contra o diretor.

Divulgação
Cena do filme
Cena do filme "A Estrada 47"

"Ele parece consciente o tempo todo de que está fazendo um grande filme", pensei. O domínio retórico da câmera era visível. Primeiro, rostos sujos e barbados de pracinhas, depois, o claro e indiferente azul do ar de inverno. Humanidade e destino, pequenez e grandeza. "Hum, tudo isso vai muito bem, mas não me pega."

Demorou um pouco mais para que eu finalmente me rendesse.

Terminei achando "A Estrada 47" um filme inesquecível. Mais do que uma história de guerra excelente, é também um filme sobre o Brasil –sobre nossas fraquezas reais e sobre as qualidades que imaginamos ter.

"Seus brasileiros de merda", diz um fugitivo italiano ao nosso pobre pelotão perdido na neve. Carregado de ódio aos alemães –com toda razão, claro–, o italiano não entende que tenhamos algum respeito pela vida do inimigo.

De onde vem tanta "nobreza de caráter" de nossa parte? Uma das belezas de "A Estrada 47" está em oferecer respostas ambíguas a essa pergunta. Não estamos diante de um filme que pretenda enaltecer os soldados brasileiros.

Apavorados, os pracinhas se indagam o tempo todo o que foram fazer na guerra. Dúvida excessiva, talvez, pensando no fato (citado no filme) de que mais de mil brasileiros morreram em bombardeios alemães contra nossos navios.

Seja como for, os soldados da Força Expedicionária Brasileira não pertencem a uma história multissecular de conflitos europeus. A estranheza que sentem naquela situação (ainda mais com a neve, o frio e a chuva, na lindamente mutável meteorologia do filme) contribui para que tratem humanamente o inimigo aprisionado.

Mas "A Estrada 47" não alimenta a ideia de que os brasileiros sejam mais pacíficos e bonzinhos que outros povos.

Entre os membros daquele pelotão da FEB, predomina o preconceito racial, a falta de generosidade e uma quase permanente ausência de senso de humor.

Nossa "falta de história", nossa "ingenuidade" com relação à experiência da guerra e nossa debilidade material é que determinam a notável aventura dos personagens do filme. Para não passar por covardes, os pracinhas se empenham em retirar as minas antitanque de uma estrada, permitindo assim a entrada triunfal das tropas americanas na região.

Eis os brasileiros reduzidos a um papel modestíssimo; as glórias do momento (e a hegemonia político-econômica posterior) ficam para outros. Nossos heróis, que matam pouquíssimo, se amedrontam muito e se arriscam mais ainda, terminam esquecidos, à margem do desfile.

Numa notável realização estética, "A Estrada 47" monta uma narrativa em que esquecimento e rememoração se interpenetram.

Sem nenhum ufanismo, mas sobretudo sem o típico autodeboche que tanto fez mal ao cinema brasileiro, o filme deixa o espectador com uma sensação simultaneamente boa e dolorida sobre o país; provavelmente, essa dubiedade é o que de melhor podemos ter.

MARCELO COELHO, 56, é colunista da Folha.


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