Folha de S. Paulo


Cientistas criam fermento que pode transformar açúcar em ópio

A heroína feita em casa pode se tornar realidade, alertaram cientistas, depois da criação de variedades de fermento concebidas para converter açúcar em opiáceos.

O avanço marca a primeira ocasião em que cientistas reproduziram artificialmente todo o percurso químico que acontece nas papoulas a fim de produzir morfina na natureza.

Allauddin Khan - 11.abr.2015/AP
Campo de papoulas no distrito de Kandahar’s Zhari, no Afeganistão
Campo de papoulas no distrito de Kandahars Zhari, no Afeganistão

Os cientistas alertaram que a descoberta abriria caminho para a substituição de plantações de papoulas por "cervejarias" locais de morfina, e pediram a regulamentação urgente da tecnologia. Em teoria, produzir ópio não seria mais difícil do que aprender a usar um kit para fazer cerveja em casa, o que resultaria na possibilidade de pessoas instalarem laboratórios de produção de droga caseiros ao estilo da série "Breaking Bad".

Tania Bubela, professora de saúde pública na Universidade de Alberta e coautora de um comentário sobre a pesquisa em questão na revista "Nature", disse que "em princípio, qualquer pessoa com acesso à variedade de fermento em questão e conhecimentos básicos de fermentação poderia criar fermento produtor de morfina usando um kit para produção doméstica de cerveja".

A equipe responsável pela descoberta parou a um curto passo de concluir a cadeia química de uma variante de fermento fácil de produzir, e anunciou uma moratória voluntária em seu trabalho a fim de dar tempo às autoridades policiais e regulatórias para recuperar o atraso.

"Nós certamente não estamos buscando o mercado de drogas ilícitas, isso é certo", disse Vincent Martin, microbiologista da Universidade Concordia, em Quebec, e coautor do estudo. "Percebemos estar adentrando um admirável território novo, aqui. Eu e meus colaboradores sentimos que as diversas organizações regulatórias devem ser consultadas, que deve haver uma conversa para que cheguemos a um consenso de como ir adiante com isso".

As descobertas, publicadas pela revista científica "Nature Chemical Biology", marcam uma virada nos esforços que vêm sendo realizados há mais de uma década para reproduzir em micróbios o percurso químico de 15 passos que acontece na planta da papoula.

Os cientistas haviam obtido sucesso anteriormente em reproduzir a segunda metade do percurso químico, mas a conversão inicial de glicose em um composto chamado reticulina havia provado ser uma dificuldade. O mais recente estudo resolve o problema pela primeira vez inserindo no fermento genes de uma planta de papoula, beterraba e uma bactéria que vive na terra.

Diversas variedades existentes de fermento podem transformar reticulina em morfina, e os cientistas dizem que combinar as duas metades do processo agora era viável –ainda que não tivessem tentado esse passo final, até o momento.

"O que você realmente precisa, da perspectiva da fermentação, é ser capaz de alimentar a glicose do fermento, uma fonte barata de açúcar, e levar o fermento a dar todos os passos químicos requeridos, mais adiante, a fim de produzir o medicamento terapêutico visado", disse John Dueber, o líder do estudo, bioengenheiro da Universidade da Califórnia em Berkeley. "Com nosso estudo, todos os passos foram descritos e agora é questão de ligá-los e de produzir o processo em escala maior. Não é um desafio trivial, mas é superável."

Ele previu prazo de "um par de anos, não uma década", para a produção confiável de drogas controladas por meio de fermento alimentado por açúcar.

A capacidade de sintetizar opiáceos em laboratório traz a possibilidade de criar novas formas terapêuticas da droga, projetadas para viciar menos e produzir efeitos mais fortes ou duradouros, por exemplo.

"Isso cria uma plataforma para descobrir novas estruturas químicas que poderiam ter muitos benefícios potenciais", disse Martin.

No entanto, o avanço desperta preocupações sobre a possibilidade de que o fermento caia em mãos erradas. Em seu comentário, Bubela e colegas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) apelam por urgente regulamentação da tecnologia, advertindo que ela pode levar a um sistema alternativo para as atuais redes criminosas, especialmente na América do Norte e Europa, onde as drogas têm alta demanda. "Porque o fermento é tão fácil de esconder, cultivar e transportar, as organizações criminosas e agências policiais teriam mais dificuldade em controlar a distribuição de uma variante produtora de opiáceos", escreveram os autores. "Tudo computado, a produção descentralizada e local quase certamente reduziria o custo e aumentaria a disponibilidade de opiáceos ilegais –agravando substancialmente um problema mundial."

Noorullah Shirzada - 5.mai.2015/AFP
Afegão trabalha em campo de papoulas na província de Nangarhar
Afegão trabalha em campo de papoulas na província de Nangarhar

Futuras variantes do fermento produtor de morfina podem ser projetadas de forma a ter requisitos incomuns em termos de nutrientes, como forma de biocontenção, sugere Bubela. Essas variantes também podem ser mantidas em instalações biosseguras, no futuro, com salvaguardas semelhantes às que existem para os pesquisadores que trabalham com o antraz ou varíola.

Mais de 16 milhões de pessoas usam opiáceos ilegalmente, em todo o mundo. As drogas vêm do uso indevido de medicamentos contra a dor e de papoulas cultivadas ilegalmente em países como Afeganistão, Laos e México.

"A hora de pensar em novas políticas para tratar dessa área de pesquisa é agora", disse Dueber. "O campo de pesquisa está avançando com surpreendente rapidez, e precisamos nos antecipar, para que possamos mitigar o potencial de abuso".

Martin disse que a equipe não tinha planos de completar a cadeia até que haja regulamentações em vigor para que seja possível fazê-lo em segurança. "Se isso é algo que não devemos fazer, melhor falarmos sobre o assunto agora", ele acrescentou.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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