Folha de S. Paulo


Ponto Crítico - "Mad Men" é isso aí

Se Shakespeare estivesse vivo, escreveria séries de TV. Há dois anos, a revista britânica "The New Statesman" publicou esta provocação. Embora de efeito, a frase resume a Era de Ouro por que passa a dramaturgia da televisão anglo-americana, principalmente aquela exibida nos canais pagos ou sob demanda.

De "The Wire" a "Família Soprano", de "Breaking Bad" a "The Newsroom" e "House of Cards", são muitos os títulos que ladeiam ou superam em qualidade, decerto não o cânone shakespeariano, mas o melhor da produção teatral contemporânea. Com público muito maior.

A TV paga atinge 88 milhões de casas nos EUA e 20 milhões de assinantes no Brasil; o Netflix tem 63 milhões de assinantes no mundo, dos quais se estima que 2,2 milhões estejam no Brasil –a empresa segue a cartilha de secretismo chinês da nova mídia e não divulga seus números por país.

Justina Mintz/AMC
Cena da temporada final de
Cena da temporada final de "Mad Men"

O fenômeno televisivo relativamente recente faz sombra também a Hollywood, que hoje só mantém suas bilheterias altas com o público das adaptações de quadrinhos e dos livros de temática adolescente ("jovem adulto", no jargão da indústria editorial) e das cinesséries.

Em festas, jantares e redes sociais, discutem-se nomes como David Simon, David Chase, Vince Gilligan, Aaron Sorkin e Beau Willimon, respectivamente os autores das séries citadas, como se discutiam nos anos 70 e 80 Woody Allen, Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e Brian de Palma.

Eles são o que Brett Martin chama de "homens difíceis", no livro homônimo ("Difficult Men" no original), lançado no Brasil em 2014 pela Aleph: maestros cheios de personalidade de séries dramáticas de poucos episódios por temporada, gênero que se tornou o que ele considera "uma forma de arte americana por excelência".

Depois de sete temporadas e 92 episódios, o último dos quais exibido no domingo passado nos EUA e na noite seguinte no Brasil, "Mad Men" coloca naquele grupo seleto de autores Matthew Weiner, criador dessa série sobre executivos de publicidade que se passa nos anos 60.

O título faz trocadilho triplo com "homens loucos", tradução literal, "ad men", publicitários, e os frequentadores da Madison Avenue, em Nova York, que naquela época concentrava as sedes das principais agências do país.

Conceber um anúncio de 30 segundos sobre publicitários já é um risco, pelo interesse restrito do assunto; uma série inteira parecia um capricho fadado ao fracasso. Não foi o que aconteceu. "Mad Men" começou como cult em 2007 e terminou um sucesso de crítica e público.

O segredo esteve mais uma vez no roteiro. Os "plots" eram sofisticados se comparados aos de uma telenovela brasileira típica, por exemplo, mas de compreensão simples. Os personagens, mesmo os secundários, fugiam da bidimensionalidade encontrada em outros gêneros, como as séries de comédia com risada da plateia.

Mas o motivo principal é o personagem de Don Draper, prodigioso diretor de criação da agência fictícia Sterling-Cooper. Na verdade filho de uma prostituta que rouba a identidade de um soldado morto em combate, ele é o que Brett Martin também classifica como "homem difícil": um anti-herói de moral duvidosa que, a cada semana, conquista e choca seu público ao mesmo tempo.

Interpretado por Jon Hamm, ele inventa para si mesmo um tipo que funciona muito bem como um homem dos anos 50, com sua misoginia e suas regras sociais definidas, mas que acaba por se sentir pouco à vontade na loucura da década seguinte.

O desconforto fica evidente na última temporada, em que ele cruza os EUA numa busca, digamos, hamletiana de si mesmo. Acaba por encontrar-se no último episódio –NÃO LEIA SE AINDA NÃO VIU O EPISÓDIO–, em que o autor junta inteligentemente contracultura e Coca-Cola.

Ao usar a experiência do personagem Don Draper num retiro espiritual de hippies da Califórnia para fazê-lo criar na trama aquele que na vida real é considerado o melhor filme publicitário da história do refrigerante mais vendido do planeta, Matthew Weiner amarra todos os fios soltos da série.

A peça ficou conhecida como "Hilltop" (alto da montanha) e traz jovens de várias cores e nacionalidades, com trajes típicos da época, cantando que gostariam de comprar uma Coca-Cola para o mundo, que então viveria em harmonia. Da letra ficaram famosos os slogans "Is the real thing" (é o artigo genuíno, em tradução livre), que na versão brasileira viraria "Isso é que é" e, no fim, "Coca-Cola é isso aí".
Assim, na cena final, Weiner critica a si e aos colegas: somos todos geniais, mas no fim o que importa é quem paga as contas.

SÉRGIO DÁVILA, 49, é editor-executivo da Folha e autor dos livros "Nova York - Antes e Depois do Atentado" (Geração) e "Diário de Bagdá - A Guerra do Iraque Segundo os Bombardeados" (DBA).


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