Folha de S. Paulo


A teoria da conspiração por trás da morte de Bin Laden

RESUMO Jornalista vencedor do Prêmio Pulitzer questionou na última semana versão oficial do assassinato de Osama bin Laden pelos EUA. No que o autor deste texto diz ser uma teoria conspiratória, Seymour Hersh defende que o serviço secreto paquistanês participou da morte do líder da Al Qaeda, que estaria inválido.

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A foto divulgada pela Casa Branca é uma sofisticada peça de propaganda. Lá está um Barack Obama atento, rodeado pelos conselheiros de Segurança Nacional e por Hillary Clinton, a secretária de Estado, cobrindo a boca com a mão direita, numa expressão angustiada que contrasta com a determinada frieza do presidente.

Osama bin Laden foi executado na tarde de 1º de maio de 2011, hora de Washington, no seu esconderijo de Abbottabad, Paquistão, por um comando de Seals (força de operações especiais da Marinha americana), em uma operação secreta, de alto risco, conduzida exclusivamente pelos EUA. Ou não. Segundo Seymour Hersh, a versão oficial, rematada mentira, oculta uma ação conjunta das agências de inteligência americana e paquistanesa para assassinar um prisioneiro aleijado que já não representava perigo algum.

O defeito principal da história de Hersh não está na sua intrínseca fragilidade, mas no pressuposto implícito que a inspira.

Pete Souza - 1º.mai.11/Casa Branca/Reuters
O vice-presidente americano, Joe Biden, o presidente, Barack Obama, e a então secretária de Estado, Hillary Clinton, em foto de 1º de maio de 2011
O vice-presidente americano, Joe Biden, o presidente, Barack Obama, e a então secretária de Estado, Hillary Clinton, em foto de 1º de maio de 2011

O artigo do jornalista (goo.gl/kVNA41) contradiz cada uma das afirmações que formam a versão oficial. A CIA não descobriu o paradeiro de Bin Laden seguindo as pegadas de um mensageiro, mas por meio da traição de um agente do ISI, órgão da inteligência paquistanesa. A operação dos Seals não foi secreta, mas planejada e executada em conluio com o Paquistão. Na ação, não houve troca de tiros, pois o chefe terrorista carecia de qualquer proteção. Obama violou o acordo com os paquistaneses ao anunciar a eliminação do líder da Al Qaeda na cidade que sedia a mais célebre academia militar do país. O corpo de Bin Laden não foi sepultado no mar, mas lançado sobre as montanhas afegãs do Hindu Kush. Contudo Hersh não tem nada além de conjecturas de segunda mão.

As fontes do jornalista não participaram das decisões, alegando apenas que retransmitem informações de outros agentes. Asad Durrani, única fonte identificada, diretor-geral do ISI nos idos de 1990-92, limitou-se a dizer à CNN que a história de Hersh é "plausível".

POSSÍVEL

Separadamente, dois dos seals engajados na operação ofereceram relatos detalhados que se encaixam na versão oficial. Testemunhos jornalísticos independentes, acompanhados por fotografias, mostram as marcas de um pesado tiroteio no complexo de Abbottabad. Os cultores das teorias conspiratórias sempre podem alegar que as testemunhas inconvenientes são, elas mesmas, tentáculos do núcleo conspirador, mas essa estratégia clássica só funciona diante de plateias ingênuas.

Há um elemento mais que "plausível" no roteiro do jornalista. De fato, é difícil acreditar que o ISI desconhecia o esconderijo de Bin Laden. Entretanto, a Casa Branca nunca afirmou algo assim -e, implicitamente, sempre acusou a inteligência paquistanesa de colaborar com a Al Qaeda. Daí à lenda segundo a qual o terrorista encontrava-se sob custódia do ISI, que resolveu entregá-lo à CIA, vai uma longa distância.

A facilidade com que Hersh a percorre, asfaltando o caminho com os materiais da especulação e do boato, lança um jato de luz sobre seus pressupostos fantasiosos. Na raiz de tudo, está a crença, tão difundida quanto falsa, de que a Al Qaeda é um artefato dos serviços secretos dos EUA, do Paquistão e da Arábia Saudita.

Em entrevista à CNN, tentando camuflar as carências fatuais de sua história, Hersh indagou: "24 ou 25 caras vão até o meio do Paquistão, pegam o cara sem cobertura aérea nem proteção, na boa. Você está brincando?".

Contam-se às dezenas as operações de comando -americanas, israelenses, francesas, britânicas e russas- com características similares, mas repercussões obviamente menores.

A versão oficial tem detalhes obscuros e, quase certamente, inclui mentiras laterais destinadas a resguardar feios segredos das agências americanas de inteligência. Contudo sua estrutura central parece bastante sólida.

Hersh saltou para a celebridade aos 33 anos, em 1969, expondo o massacre de My Lai, no Vietnã, o que lhe valeu um Prêmio Pulitzer. Três décadas e meia depois, assinou reportagens que ajudaram a revelar as torturas conduzidas pelos EUA em Abu Ghraib, Bagram e Guantánamo.

No entanto é ele que anda "brincando" com sua própria credibilidade. Numa de suas recentes histórias delirantes, o governo americano treinou terroristas iranianos em Nevada; em outra, a Turquia aparece como responsável por bombardeios químicos na Síria.

Alguns elementos de sua tese conspiratória sobre a eliminação de Bin Laden devem ser inscritos na mesma categoria, em especial a alegação de que a Arábia Saudita continuou a financiar a Al Qaeda anos depois da ocupação americana do Iraque -ou seja, quando a organização jihadista deflagrava uma campanha de atentados para derrubar a monarquia dos Saud.

Resenhando o livro "Chain of Command" (Cadeia de comando), de Hersh, o iraniano Amir Taheri ironizou o hábito do autor de citar fontes anônimas que, por sua vez, mencionam informações de outras fontes, igualmente ocultas.

"Pelas minhas contas, Hersh tem fontes anônimas em 30 governos estrangeiros e praticamente todos os departamentos do governo americano", escreveu no jornal britânico "The Telegraph".

Talvez o jornalista disponha, realmente, de uma rede interminável de informantes -e o próprio Taheri está longe de ser um analista de ilibada reputação. O problema encontra-se na sua irresistível atração pelas teorias conspiratórias. No mundo dos serviços secretos, não faltam conspirações. Mesmo assim, a política internacional não é um imenso complô.

Raoul Girardet explicou, no "Mitos e Mitologias Políticas" (Companhia das Letras, 1987), que a morfologia básica da narrativa da conspiração é sempre a mesma, quer se trate do complô jesuítico, do maçônico ou do judaico. O núcleo de conspiradores move-se pelo objetivo "da edificação de um Império em escala universal, da unificação do globo sob uma única e total autoridade".

Nessas narrativas, todos os atores, grandes e pequenos, são de algum modo manipulados pelos Mestres do Complô. As histórias recentes de Hersh -a dos terroristas iranianos, a dos ataques químicos e a da eliminação de Bin Laden- pertencem à vasta família do mito da conspiração. No fundo, o jornalista quer nos convencer de que as agências de inteligência ocidentais mantêm controle sobre tudo e todos, inclusive o terror jihadista.

CONTO

Teorias conspiratórias pertencem ao universo do conto infantil. Na sua clareza cortante, suprimem a complexidade, as incertezas, a dinâmica dos antagonismos, oferecendo um modo ordeiro de decifrar o mundo. A Al Qaeda foi criada pelos EUA e seus associados, Arábia Saudita e Paquistão. Bin Laden era um joguete, antes de se tornar um cativo, idoso e aleijado, na cela paquistanesa de Abbottabad. A "guerra ao terror" não passa de fachada para esconder os reais, malévolos objetivos geopolíticos e econômicos americanos.

A ironia nisso tudo é que, abaixo de uma superfície de denúncia do Ocidente, jaz a negação da existência de atores autônomos não ocidentais -ou seja, no fundo, a obliteração da história dos outros.
Um antigo alto agente da inteligência americana especulou que, ao expor uma suposta grande mentira da Casa Branca, Hersh opera como marionete do ISI. Por essa via, a agência paquistanesa, criticada por não ter detectado a operação dos Seals, resgataria sua corroída reputação e, ademais, se vingaria de Obama. Faz sentido, pelo menos na lógica singular das teorias conspiratórias.

DEMÉTRIO MAGNOLI, 56, sociólogo e doutor em geografia humana, é colunista da Folha.


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