Folha de S. Paulo


Arquivo Aberto - Raro infortúnio, grata surpresa

Aconteceu semanas antes da minha defesa de mestrado sobre o poeta Manuel Bandeira, em 1991. À época, eu fazia aulas de canto com uma amiga, Sonia Mindlin, na casa de seu pai, o bibliófilo José Mindlin, na r. Princesa Isabel.

Deixei meu fusca "Fafá de Belém" bem em frente à casa, onde ainda funcionava a famosa Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, hoje na USP. Após a aula, tive a desagradável surpresa de ver que haviam arrombado o carro e roubado no banco traseiro uma preciosa sacola, com meus livros e anotações para a banca de defesa da dissertação...

A decepção foi imensa. Por que não levaram o carro? Seria tão mais fácil me conformar! E agora? Como organizar todo o material e comprar de novo os livros, principalmente a obra completa do poeta pela Nova Aguilar? E, afinal, como seriam úteis ao ladrão de poemas os meus pobres comentários? Anos me consolei pensando que, ao menos, alguém que não teria essa chance conheceu um dos maiores poetas do Brasil.

A semana se passou e lá estava eu novamente na casa do sr. Mindlin, pronta para espantar os males na aula de canto. Toco a campainha e é ele mesmo quem atende a porta, dizendo: "Estou desolado pelo que ocorreu em frente à minha casa e não tenho como reparar a perda de suas anotações. Mas, gostaria de minimizar o episódio oferecendo a você alguns exemplares que tenho aqui."

Eduardo Knapp/Folhapress
Sao Paulo, , Brasil, 17-04-2015 17h58:ARQUIVO ABERTO. Livro Itenerario de Pasargada , de Manuel Bandeira (1a Edicao de 1954 com capa feita por Carlos Drummond de Andrade. Editora: Jornal de Letas) doado por Jose Mindlin a professora doutora Yudith Rosenbaum. Livro fica na residencia da professora em seu ape em Perdizes (Foto Eduardo Knapp/Folhapress.ILUSTRADA)
"Itenerario de Pasargada", de Manuel Bandeira (1ª Edicao de 1954 com capa feita por Carlos Drummond de Andrade. Editora: Jornal de Letas)
Eduardo Knapp/Folhapress
Sao Paulo, , Brasil, 17-04-2015 17h57:ARQUIVO ABERTO. Livro Homenagem a Manuel Bandeira 1986 - 1988 (Organizado por Maximiliano de Carvalho e Silva em edicao comemorativa do centenario do poeta e dos vinte ando de seu falecimento. Edicao do livro de 1989) doado por Jose Mindlin a professora doutora Yudith Rosenbaum. Livro fica na residencia da professora em seu ape em Perdizes (Foto Eduardo Knapp/Folhapress.ILUSTRADA)
"Homenagem a Manuel Bandeira 1986 - 1988" (Organizado por Maximiliano de Carvalho e Silva em edição comemorativa do centenário do poeta em 1989)

Eu nem pude acreditar quando recebi, das mãos de uma das pessoas mais amorosas que já conheci, três livros importantes: a primeira edição de "O Itinerário de Pasárgada", de 1954; uma edição de 1986 com apenas 201 exemplares, fac-símile da "Homenagem a Manuel Bandeira", nos seus 50 anos, em 1936, reunindo depoimentos históricos sobre o poeta, com reproduções de fotos e desenhos notáveis; e, por fim, uma interessante coletânea comemorativa do centenário de Bandeira e dos 20 anos da morte do poeta.

Fiquei perplexa com a generosidade de alguém que mal me conhecia e que não tinha nenhuma responsabilidade pelo furto. Eu é que tinha, por deixar meus pertences –sobretudo esses!– no carro.

Só esses presentes já me dariam uma alegria enorme. Mas a dedicação do pai da minha amiga ainda reservava uma surpresa maior: ofereceu-se para ser meu guia em sua biblioteca! "Gostaria de acompanhar-me agora mesmo?", perguntou. E lá fui eu, a mais privilegiada das Alices (sem esquecer de agradecer ao ladrão por seu ato ilícito!), percorrer os corredores encantados do jardim de livros do país das maravilhas.

Lembro até hoje como o sr. Mindlin abria os volumes e me mostrava, com um sorriso de criança, o menor e o maior dos livros do acervo; depois fazia o mesmo com os manuscritos do "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, de textos de Machado de Assis, de José de Alencar, entre tantos.

Eu me divertia ouvindo sobre as aquisições de raridades, encontros e desencontros entre escritores e suas obras. Uma ou outra vez, meu condutor ficava apreensivo: "Estou lhe aborrecendo? Você está me achando um pouco maluco, não?" "O passeio está ótimo", eu dizia.

E assim passei uma das tardes mais gratificantes do meu tempo de mestranda. No dia da defesa, expus na mesinha os livros que ganhei, antes da arguição. Queria impressionar a banca, descontrair o ambiente. Não deram bola, as perguntas vieram sem dó. Pelo menos me aconcheguei olhando aquelas obras raras, abrigando-me nelas nos momentos de tensão.

Tenho-as ainda, já amareladas pelo uso e pelo tempo, como aquela estatuazinha de gesso do poema de Bandeira. Mas o frescor daquela tarde, ao lado de uma personalidade única no mundo das letras –e dos afetos!– permanece em mim sem nenhuma alteração.

Tenho certeza de que José Mindlin foi-se embora pra Pasárgada e anda por lá, mostrando a uma legião de leitores, alumbrados, o vasto mundo de sua biblioteca.

YUDITH ROSENBAUM, 55, é professora de literatura brasileira na USP e autora de "Manuel Bandeira: uma Poesia da Ausência" (Edusp).


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