Folha de S. Paulo


Ponto Crítico - O grafite fora do lugar

Quem conhece as ruas sabe bem que para ser chamada de grafite uma pintura deve obedecer a alguns critérios básicos. Tem que ser feita na rua, de forma ilegal e sem a autorização prévia do dono do muro, seja ele público ou privado. Na parede, o artista tem que fazer o que bem entender, sem obedecer a nenhuma regra que não seja sua vontade mais íntima de se expressar de forma livre e espontânea. Para que um grafite seja considerado autentico só existe um regra: a ausência total de regras.

Exposições de grafite em museus e galerias são uma contradição em termos. Se uma pintura está ali é porque houve uma curadoria, aquele artista foi escolhido em detrimento de outros, um determinado espaço foi reservado para que ele pudesse se expressar naquele ambiente, foi feito um projeto, foram instaladas luzes especiais para favorecer a obra e observada uma sequência de pinturas pensada para funcionar de acordo com o fluxo de visitantes.

Tudo isso vai contra todas as regras básicas do que pode ser chamado de grafite, mas não tira a força desse tipo de exposição. O que se vê nas galerias e museus não é o grafite propriamente dito, mas uma representação dessa arte de rua, mastigada e entregue em um formato mais fácil de ser digerido pelo grande público.

Esse é o caso da 3ª Bienal de Grafite Fine Art de São Paulo, exposição com a participação de mais de 60 artistas, que acontece desde 17/4 no Pavilhão das Culturas Brasileiras, no parque Ibirapuera, e vai até o dia 19/5.

Com curadoria de Binho Ribeiro, artistas de várias partes do Brasil e do mundo, como o americano Pose2, o alemão Tasso, a paraense Drica, o baiano Dalata e o paulistano Mundano, coloriram as paredes do pavilhão com técnicas variadas, muitas delas oriundas do grafite tradicional, como spray, pincel e estêncil, mas também utilizando técnicas que não são vistas normalmente nas ruas, como escultura e videoarte.

Um dos pontos altos da exposição é o fato de que alguns muros externos do prédio também foram pintados, fazendo com que o visitante quase não perceba a diferença entre fora e dentro, rua e prédio, emulando de certa forma o que vemos nas ruas. O destaque negativo, porém, é a ausência de informações acompanhando as obras expostas e a falta de um catálogo ou folheto com mais informações sobre os trabalhos e o histórico dos artistas. Como não poderia deixar de ser, a exposição é gratuita.

O grafite é uma arte efêmera por natureza. Quando pinta na rua, o artista sabe que aquela pintura cedo ou tarde será apagada. Na Bienal de Grafite é a mesma coisa, já que a as paredes do pavilhão onde parte das obras foram pintadas não podem ser vendidas. O que fica, tanto na rua quanto na galeria, é o registro em foto e vídeo.

Uma das grandes discussões em torno do grafite em São Paulo, retratada no documentário "Cidade Cinza" de Marcelo Mesquita, é o fato de a prefeitura pintar de cinza de forma sistemática muros públicos grafitados sem se preocupar se são artistas famosos, como os que estão expondo atualmente na Bienal, ou outros, pouco conhecidos. Enquanto alguns esperneiam ao ver suas obras cobertas, outros aceitam de forma mais tranquila: afinal, toda vez que um grafite é coberto por tinta cinza pelos agentes da prefeitura, uma nova tela se apresenta para que outros artistas a preencham.

Em outubro de 2008, durante a 28ª Bienal de São Paulo, um grupo de cerca de 50 pichadores liderados por Rafael Augustaitiz invadiu o pavilhão da Bienal, no mesmo parque Ibirapuera onde está o prédio que apresenta a exposição de grafites, e pichou um dos andares que seus organizadores chamavam de "andar vazio".

Alguns deles foram detidos por seguranças e trancados em uma sala ao lado da chapelaria, mas conseguiram escapar quebrando uma vidraça. Essa foi a primeira e provavelmente a única vez em que a arte de rua entrou em uma Bienal sem perder a característica que faz com que ela possa ser chamada verdadeiramente de arte de rua: a ilegalidade.

JOÃO WAINER, 38, repórter especial da Folha, dirigiu os documentários "Pixo" (2009) e "Junho" (2014).


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