Folha de S. Paulo


Diário do Rio - O imaterial e o inventado

A moda ou tendência (palavra da moda que, por si só, já é uma tendência) no Rio é elencar patrimônios imateriais. Trata-se de uma ação política de valorização da cidade nos seus 450 anos. Sem consulta popular, resulta um saco de gatos, alguns de raça, outros pingados e malhados.

Cabe de tudo na lista preparada pelo Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, ligado à prefeitura: os choros e valsas do Pixinguinha, os romances e contos de Machado de Assis, o frescobol do Millôr Fernandes, o vendedor de mate na praia, a bossa nova, o charme, o Mercadão de Madureira, a torcida do Flamengo. Até o Cine Paissandu, que está fechado desde 2008, e caindo aos pedaços, tem lugar assegurado por decreto. Como os lambe-lambes de praça. Que praças? Que lambe-lambes?

Até o momento, 53 bens culturais de natureza imaterial receberam o carimbo de "preservados". Cada um dos itens representaria o espírito carioca, muito badalado, mas que, na verdade, não costuma baixar tão fácil assim.

Só de bares e botequins, são mais de 20 na seleção institucional. Azar, para não dizer outra coisa, do Pastoria, mais conhecido como 28, por ficar nesse número da r. Barão de São Félix, na parte abandonada da cidade atrás da Central do Brasil. Abandonada em termos ou por esperteza, pois o 28 fechou as portas para dar lugar a um hotel. Outra vítima da especulação imobiliária no velho Centro.

Só pelo prato de cabrito com batatas coradas o restaurante teria merecido figurar em qualquer lista de patrimônio. No caso, bem material: saía-se de lá com o estômago forrado, a alma carioca satisfeita.

CAFÉS E BUFÕES

É em torno de dois bares desaparecidos que gira o mais recente livro de Nei Lopes, "Rio Negro, 50" [Record, 288 págs., R$ 35]. Um deles inteiramente fictício e reduto de intelectuais, o Café Rio Negro; o outro, Café Abará, combina estabelecimentos reais que sumiram na poeira da nossa atual gentrificação: o restaurante de comida baiana Oxalá e o Tangará, boteco famoso pelas batidas de gengibre e maracujá. Ambos ficavam no trecho escondido da Cinelândia apelidado por motivos óbvios de Beco da Cirrose.

Chamado de romance na capa, a obra se define melhor como pesquisa histórica imaginativa, que repassa a importante presença cultural dos negros cariocas na década de 1950. O episódio de fábula que conta a origem do morro do Salgueiro, com direito a dois anões bufões mulatos, é impagável.

NOEL EM TOM DE CINZA

Jovem branco de classe média que de bobo não tinha nada, Noel Rosa uniu-se, nos primeiros anos da década de 1930, aos negros e mulatos do Estácio que estavam revolucionando o samba. O compositor é a matéria-prima do CD duplo recém-lançado "Noel Rosa, Preto e Branco", da cantora Valéria Lobão (financiado por "crowdfunding", custa R$ 36 nas lojas).

Não se trata de mais uma colagem de clássicos e sucessos óbvios. É um projeto autoral desde a escolha do repertório menos batido. São canções que estavam em "descanso", como diz o produtor Carlos Fuchs: "Julieta", parceria com Eratóstenes Frazão; "Eu Agora Fiquei Mal", composta com Antenor Gargalhada; "Suspiro", com Orestes Barbosa.

Com voz intensa, Valéria se faz acompanhar nas 22 faixas só por pianistas. "Cor de Cinza", o enigmático samba cuja letra até hoje desafia especialistas na obra de Noel, surge ainda mais belo no arranjo de João Donato.

O BONDE FUTURISTA

Junto com a zona portuária, a avenida Rio Branco é o alvo das transformações. Atualmente está esburacada e intransitável por conta das obras de implantação do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), espécie de bonde futurista que, espera-se, a população saberá apelidar de maneira mais adequada.

A exposição "Rio 1908", em cartaz no Arquivo da Cidade (Praça da República, 173, com entrada grátis), mostra desenhos e plantas originais da antiga avenida Central. A notar: a maioria das edificações em estilo eclético já desapareceu na voragem da especulação. Ficava ali a maior concentração de cafés, com mesinha, copo d'água e garçom nas calçadas. Hoje não resta nem um para contar história. Quanto tempo vai durar o VLT?

ALVARO COSTA E SILVA, o Marechal, 52, é jornalista.


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