Folha de S. Paulo


A extraordinária história dos filmes sul-africanos na era do apartheid

RESUMO Filmes de faroeste de grande sucesso, dramas sobre grandes operações de roubo e thrillers ao estilo James Bond; o lançamento de uma carreira em Hollywood e a produção do primeiro filme falado em zulu na história do cinema; será que faz diferença que a explosão do cinema negro na África do Sul da era do apartheid tenha sido bancada pelo governo e liderada por um empresário africâner da construção?

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No ano passado, Tonie van der Merwe tinha em mãos o mais sul-africano dos drinques, um conhaque duplo com Coca-Cola, ao aceitar o prêmio Simon Sabela como um dos quatro "heróis e lendas" do festival internacional de cinema de Durban. "Sem ser racista, eu imaginava que um cara branco dificilmente ganharia um prêmio, mas estava errado", ele disse, do palco, usando um smoking e os grandes óculos arredondados que o caracterizam.

Certamente poucos brancos na África do Sul moderna recebem prêmios por filmes que produziram sob um esquema de subsídio da era do apartheid cujo objetivo era criar filmes para as plateias negras. Mas lá estava ele, 20 anos depois da queda do apartheid, para ver reconhecido o seu imenso mas ambíguo papel no desenvolvimento do cinema sul-africano.

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Umbango
Umbango (1986)

Para muita gente, os filmes "B-scheme" que ele fez - fantasias escapistas, aventuras juvenis, histórias de moral simplória - eram o equivalente cinematográfico da "cerveja nativa", diluída com água, que as cervejarias do governo vendiam aos negros na era do apartheid - uma cínica manobra do governo do Partido Nacional para encorajar a população negra a não sair das reservas. No final de um desses filmes, o herói, Popo Gumede, se vira para a câmera e diz: "Tudo isso poderia ter sido evitado se simplesmente nos sentássemos para conversar a respeito". Já outros apontam para o papel seminal de van der Merwe no estabelecimento de uma indústria negra do cinema, de qualquer maneira que fosse, e dizem que ver tantos rostos negros nas telas inspirou toda uma geração.

Tudo isso vindo de um homem que, aos 30 anos, parecia bem satisfeito como proprietário de uma construtora em Joanesburgo. Foi durante um projeto de construção que van der Merwe conheceu Louis e Elmo de Witt, dois irmãos que produziam filmes e o inspiraram a tentar a sorte no ramo. Mais empreendedor que artista, ele já havia percebido uma oportunidade de negócios ao reparar que seus 200 funcionários adoravam os filmes de aventura norte-americanos dos anos 70, [produções de baixo orçamento estreladas por atores negros e dirigidas a plateias negras, em um subgênero que se tornou conhecido como 'blaxploitation], exibidos nas noites de sábado em uma tela nos canteiros de obras. Por que não tentar adaptar o cinema de blaxploitation à terra em que os negros viviam explorados? Sim, por que não?

"Estava claro para mim que aquele era um mercado de futuro", recorda van der Merwe em seu escritório no subúrbio da Cidade do cabo. Aos 74 anos, ele ostenta a velha e boa cortesia franca dos africâneres. "Por isso decidi financiar a jogada toda. E usamos o equipamento da construtora para os cenários do filme - as escavadeiras, meu avião, meus carros".

O resultado foi Joe Bullet. Van der Merwe produziu, Louis de Witt dirigiu e o elenco era inteiramente negro. Ken Gampu, que mais tarde encontraria sucesso em Hollywood, estrelava no papel de Bullet, em companhia da cantora Abigail Kubeka. Uma mistura entre Shaft e James Bond, o filme mostrava Bullet bebendo, lutando caratê, dirigindo carros esporte, arremessando facas, galgando poços de minas e disparando tiros.

O filme foi grande sucesso em Soweto - por pouco mais de uma semana. Os censores decidiram que o thriller ousado retratava os negros de maneira positiva demais. "Joe Bullet" terminou proibido, e van der Merwe, que havia dedicado 18 meses à produção do filme, estava à beira do desastre financeiro.

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Joe Bullet
Joe Bullet (1973)

Mas ele não se deixou abater e percebeu uma nova oportunidade: fez lobby junto ao governo, com sucesso, para que este criasse um subsídio para a produção de filmes negros - o chamado "B-scheme". O problema era que isso significaria fazer o tipo de filme que agradasse Pretória. Ao todo, van der Merwe se envolveu na produção de cerca de 400 desses filmes. No pico de sua carreira, lançava um deles por mês. O subsídio criou uma mini corrida do ouro, de acordo com Darryl Els, proprietário de um cinema independente em Joanesburgo. "Era o melhor investimento que você podia fazer se tivesse 10 mil rand sobrando. Muitos desses filmes faturavam 70 mil rand ou mais. Os retornos eram excelentes, assim".

"Mas eu sempre busquei qualidade. Louis de Witt me ensinou que nenhum corte deveria durar mais de 11 segundos. Alguns outros diretores - eles tinham tomadas de 11 minutos de duração, a duração de um rolo de filme, porque isso significava que desse modo era possível trabalhar mais rápido e receber mais subsídios. Muitos deles nem mesmo tinham roteiros de filmagem", disse van der Merwe.

Van der Merwe escrevia muitos de seus roteiros, histórias leves, repletas de aventura, que jamais se aventuram pelo terreno socioeconômico. Ele diz que jamais foi partidário do apartheid. "Mas não sou radical e nunca me envolvi com política".

"A mensagem de meus filmes era sempre a de que o crime não compensa", diz Steve Hand, que era trabalhador rural e começou como tradutor de van der Merwe para o zulu, antes de se tornar cineasta. No estúdio, Kubeka recorda que van der Merwe era "um cavalheiro. Muito gentil. Ele não fazia tipo. Quando estávamos filmando, não existia apartheid". Mas por causa das leis da época, os atores negros e a equipe de produção, majoritariamente branca, muitas vezes tinham de dormir e comer separadamente nas locações. "Mas isso não nos incomodava muito. Nossa rebelião era simplesmente fazer arte, e fazer o nosso trabalho da melhor maneira de que éramos capazes", ela diz.

Ao longo dos anos, alguns poucos roteiros mais subversivos conseguiram escapar aos censores. O mais notável, "My County My Hat" (1983), de David Bensusan, criticava o sistema das "leis do passe", que forçavam os sul-africanos negros a portar seus passaportes internos quando deixassem suas cidades ou terras natais.

A despeito da falta de credenciais raciais, van der Merwe conseguiu realizar pelo menos um filme histórico para o nacionalismo negro, ao produzir o primeiro filme falado em zulu, "Ngomopho" (Rastro Negro). Infelizmente, ele não entendia o diálogo (seu zulu continua básico), e o editor do filme tampouco falava o idioma, o que criava toda espécie de problema. Por isso, van der Merwe desenvolveu um sistema para editar o filme no local de rodagem, ao lado da câmera. "Todo mundo do ramo me copiou, mais adiante, porque poupava muito tempo, dinheiro e irritação".

Tanto que, em 1986, ele realizaria o filme que considera sua maior obra, Umbango (A Rixa), inteiramente em zulu. "O filme foi um grande sucesso", diz Hand, que o produziu. "Criamos uma cidade de faroeste à beira do rio Mooi. Importamos roupas de caubói dos Estados Unidos. Acho que Tonie ainda tem alguns dos revólveres Colt.44".

Ao concluir a rodagem, o trabalho árduo não terminava. Hand tinha 14 caminhões plataforma cada qual equipado com dois projetores; seu pessoal rodava pelo país e exibia os mais recentes trabalhos do B-scheme em regiões rurais. "A maioria daqueles lugares nem tinha eletricidade, quanto mais cinemas", diz van der Merwe. "Alguns milhares de pessoas apareciam para assistir, e elas vinham de toda a região".

Muita gente na área rural da província de KwaZulu jamais havia assistido a um filme. "Quando mostramos 'Joe Bullet', naqueles primeiros dias", conta Hand, "na cena do rio as pessoas começavam a olhar em volta para ver de onde a água estava vindo". Ele chegou até a exibir filmes para Goodwill Zwelithini, o rei dos zulus. "Convidei-o para minha primeira estreia, e ele disse que o trabalho era fantástico".

Mas o B-scheme desapareceu tão rápido quanto havia surgido. Em 1989, Pretoria aboliu o subsídio. Em meses, todos eles tiveram de procurar empregos reais, mesmo van der Merwe, que comprou dois hotéis. Com a mudança do regime, nos anos 90, o rolo compressor da história logo apagou todo traço do B-scheme. Até que acontecesse um encontro inesperado entre van der Merwe e Benjamin Cowley, que dirige uma produtora de cinema chamada Gravel Road, na Cidade do Cabo.

"Ele me procurou porque queria financiar um musical gospel", conta Cowley. "E me disse que ainda tinha muitos dos velhos cartuchos de seus filmes".

Cowley correu a digitalizar os filmes. Em um ano, ele criou a Retro Afrika Bioscope para cuidar da tarefa. Pelo final de 2014, "Joe Bullet" estava reestreando em Durban em versão digital, e van der Merwe era um cineasta branco recebendo um prêmio na nova África do Sul.

De lá para cá, seis dos filmes foram exibidos pela TV sul-africana, e diversos outros foram restaurados pela Gravel Road, entre os quais "Treasure Hunter", sobre um menino zulu que testemunha um naufrágio, e Fishy Stones, sobre dois bandidos amadores que têm de fugir depois de um roubo de joias. Agora, van der Merwe tem a chance de dirigir seu primeiro filme em 25 anos - "Rhino Wars", um longa sobre caçadas ilegais. "Fico muito grato a Ben, porque tive essa segunda chance", ele diz. "Com certeza tenho mais um ou dois filmes a realizar".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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