Folha de S. Paulo


Iluminismo estorricado: a razão arde no fogo do aquecimento global

RESUMO O escritor Jonathan Franzen, em ensaio na revista "The New Yorker", e o filósofo Dale Jamieson, no livro "Razão em Tempos Escuros", causaram polvorosa apontando o fracasso da luta contra o aquecimento global. Jamieson ao menos crê que a humanidade pode se adaptar, se banir o carvão e reciclar ideias morais corriqueiras.

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Quando publicou o romance "Liberdade", em 2010, Jonathan Franzen incomodou a turma dos verdes ao narrar relações incestuosas de ambientalistas com magnatas da indústria. Agora se põe no ataque contra a própria "cause célèbre" do aquecimento global e caminha para se tornar, definitivamente, persona non grata no meio.

No centro da controvérsia está o ensaio "Carbon Capture -Has Climate Change Made it Harder for People to Care about Conservation?" (Captura de carbono - A mudança do clima faz mais difícil que as pessoas se preocupem com conservação?). O texto saiu na edição de 6 de abril da revista "The New Yorker" e faz uma defesa apaixonada da fauna aviária, segundo ele relegada sob o imperialismo da questão climática.

Michael Loccisano/Getty Images/HBO
NEW YORK, NY - JUNE 26: Writer Jonathan Franzen attends the HBO Documentary Films Celebrates
Jonathan Franzen no piquenique de promoção do documentário "Birders: The Central Park Effect"

O escritor colheu reações ácidas dos "climatistas", como a eles se refere. Uma das menos agressivas afirma que Franzen tem "cérebro de passarinho".

Seus críticos, no entanto, atiraram no que viram e erraram no que não viram: o fracasso da luta contra a mudança do clima. Parece mesmo bem limitada a dicotomia servida pelo romancista: ou salvamos o mundo e as futuras gerações do aquecimento global, ou preservamos os habitats e as espécies de pássaros sob risco de extinção ""hoje, não no fim do século.

Nada a estranhar, para quem abre o ensaio descrevendo-se como "alguém que se preocupa mais com pássaros do que [com] o próximo". O duplo sentido da frase parece proposital: Franzen declara nutrir um amor como o de são Francisco pelas criaturas presentes no seu campo de visão, ainda que focalizadas com um binóculo –e não tanto por seres humanos que ainda nem nasceram.

Sua irritação tem por alvo a National Audubon Society, organização ambientalista que se dedica à proteção de aves. Ele implicou com um comunicado à imprensa que fala na mudança do clima como "a maior ameaça" contra os pássaros americanos e divulga um estudo prevendo que, em 2080, quase metade das espécies estaria sob risco de perder seus habitats em consequência do aquecimento global.

Franzen enxerga aí um desvio de missão. A Audubon estaria afastando milhões de associados da tarefa de salvar as áreas de reprodução de pássaros de carne e osso e mobilizando-as num combate infrutífero. Para ele, o climatismo aliena: "A questão é se todos os que se preocupam com o ambiente estão obrigados a fazer do clima uma prioridade suprema".

"A mudança climática é sedutora para organizações que querem ser levadas a sério. Além de ser um meme pronto e acabado, é convenientemente imponderável", escreve. "A mudança do clima é culpa de todos –em outras palavras, de ninguém. Todos podemos nos sentir bem por deplorá-la."

NEGLIGÊNCIA

Não faltaram "climatistas" para acusar o golpe. David Roberts, da revista "Grist", Joe Romm, da "Climate Progress", e Karl Mathiesen, do jornal britânico "The Guardian", se apegaram ao que consideram negligência jornalística de Franzen e da revista "The New Yorker" para atacar o ensaio e recusar a disjuntiva entre salvar o planeta ou salvar as aves.

Franzen teria lido só o "press release" da Audubon, não o estudo que não conseguiu achar (embora disponível na internet). Além disso, teria interesses ocultos: criticar a sociedade de observadores de pássaros para favorecer outra (American Bird Conservancy, ABC), de cujo conselho participa. Pior: a ABC também apontaria a mudança do clima como grave ameaça. E por aí vai.

Sintomaticamente, todos eles passam ao largo do que há de mais consistente e menos sentimental no ensaio de Franzen: as ideias que não são dele. No caso, o apoio para sua exasperação encontrado em "Reason in a Dark Time" [Oxford USA, R$ 44,45, à venda em formato e-pub no site da livraria Cultura] (Razão em tempos sombrios), do filósofo Dale Jamieson.

É uma base sólida, e talvez por isso tenha sido ignorada. Jamieson se atreve, já no subtítulo, a escrever sobre o combate ao aquecimento global com o verbo no passado –"falhou". A quem vive para (ou vive de) propagar que temos a obrigação moral de legar um mundo não devastado para futuras gerações, soa como uma heresia.

QUIXOTE

Em junho fará 23 anos que quase duas centenas de países tentam pôr de pé um acordo internacional capaz de frear as emissões de gases do efeito estufa. A empreitada quixotesca começou no Rio, em 1992, deu passos titubeantes em Kyoto, em 1997, e se estatelou em Copenhague, em 2009.

Todos os olhos se voltam agora para dezembro deste ano, em Paris. Dessa nova conferência de cúpula sobre o clima, a 21ª, deveria resultar um acordo de redução das emissões mundiais suficiente para impedir que a temperatura média da atmosfera ultrapasse 2 graus Celsius até o fim do século 21.

Não vai dar, como sabem todos que acompanham a questão. Mais alguns passos incrementais serão dados, quando muito.

E não poderia ser muito diferente, argumenta Jamieson, porque há demasiados obstáculos estruturais para a agenda do clima. O filósofo não se considera pessimista, mas realista. Afirma que não estamos num momento único da história e que não somos os primeiros nem seremos os últimos a tomar decisões e fazer coisas que afetarão o planeta e a vida de muitos, inclusive dos que não nasceram.

Jamieson não nega, veja bem, a realidade, o tamanho ou a importância da ameaça climática. Ele só considera que, por seu porte, ela esgota a ideia de que a razão nos faz senhores do destino da espécie e, vá lá, do mundo.

ILUMINISMO

"A ação humana é o motor, mas parece que coisas, e não pessoas, detêm seu controle. Nossas corporações, governos, tecnologias, instituições e sistemas econômicos parecem ter vida própria. A sensação é a de vivermos em meio a uma perversão esquisita do sonho do Iluminismo."

A mudança climática não pode ser desfeita. Basta o carbono já lançado na atmosfera para que ele siga em transformação ao longo não só deste século mas deste milênio, pois os gases do efeito estufa ainda circularão por séculos a fio.

Podemos, se tanto, reduzir um pouco a velocidade da mudança e nos adaptar a ela. Contudo, transformar tal possibilidade em ações e políticas públicas, argumenta o autor, vai contra a natureza humana e as intuições morais com que a seleção natural nos equipou.

"A evolução nos construiu para responder a movimentos rápidos de objetos de porte médio, não ao acúmulo lento de gases imperceptíveis na atmosfera", alega Jamieson. E completa: "A maioria de nós reage dramaticamente ao que percebemos, não ao que pensamos. Como resultado, mesmo aqueles de nós preocupados com a mudança do clima temos dificuldade em perceber sua urgência."

Em outras palavras, o fracasso em prevenir ou conter significativamente a mudança do clima reflete o empobrecimento da razão prática, a paralisia da política e os limites da nossa capacidade cognitiva e afetiva, pondera o filósofo. "Nada disso tem chance alguma de mudar em breve."

Além de adaptação (preparar a infraestrutura para efeitos do aquecimento global) e de se livrar tão cedo quanto possível da energia obtida do carvão, o mais poluente dos combustíveis fósseis, Jamieson tem poucas recomendações práticas a fazer.

ANTROPOCENO

Mesmo isso dependeria de adequar à realidade alterada o sentido moral do senso comum, que lida tão mal com interesses alheios, não individuais e distantes. Só resta caminhar na direção do que ele chama de ética para o Antropoceno, "virtudes tradicionais, como humildade, virtudes reinterpretadas, como temperança, e novas virtudes, como consideração, simplicidade, cooperação e respeito pela natureza".

Não é muito diferente do que pediriam os críticos de Franzen, se não estivessem ofuscados pela miragem de um acordo messiânico na Cidade-Luz.

MARCELO LEITE, 57, colunista e repórter especial da Folha, autor de "Ciência, Use com Cuidado" (Ed. da Unicamp).


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