Folha de S. Paulo


Nas telas, nem todas as obras de arte são tão famosas quanto parecem

No escritório de Suzie Davies, diretora de arte londrina, pode-se ver "The Fighting Temeraire", uma marinha elegíaca pintada por J. M. W. Turner em 1839 retratando um navio de linha renomado sendo rebocado para desmonte. O quadro que se vê no escritório de Davies não é o original de Turner, claro. Não é nem mesmo uma pintura completa.

Ainda assim, "sorrio sempre que olho para ele", disse Davies sobre o quadro, uma das diversas "obras em progresso" que o pintor Charlie Cobb criou para "Sr.Turner", filme de Mike Leigh indicado ao Oscar –o qual, como diversas outras produções recentes em nosso mundo cada vez mais zeloso da propriedade intelectual e propenso a processos, teve de enfrentar a complicada tarefa de arrastar obras reais de arte para a tela.

Mas assim que os advogados saem do caminho, resta a tarefa de capturar as obras de maneira convincente, e para "Sr. Turner", como para "A Mulher de Ouro" e "Effie Gray", dramas relacionados à arte que estreiam esta semana, não existe maneira única de fazê-lo.

Andrew Dunn and Tony Pierce Roberts/"The New York Times"
David Suchet e Dakota Fanning no filme
David Suchet e Dakota Fanning no filme "Effie Gray" olhando para quadro de J.M.W. Turner

No filme de Leigh, Davies usou gravuras de alta resolução montadas em placas de espuma e revestidas de verniz a fim de simular a pintura a óleo, e as enquadrou em molduras leves. Depois que a filmagem acabou, os "Turners" de Cobb –com os quais o protagonista Timothy Spall contracenava em algumas tomadas– "começaram a surgir nas casas de diversos dos membros da equipe", brincou Davies. As cópias dos Turner reais tiveram de ser destruídas, nos termos de um acordo.

O mesmo vale para o quadro que serve de título a "A Mulher de Ouro", que deve estrear no fim de maio no Brasil. Dirigido por Simon Curtis, o filme se baseia na história real de uma sobrevivente do Holocausto, Maria Altmann (Helen Mirren), e sua década de luta para recuperar o "Retrato de Adele Bloch-Bauer I", um dos cinco quadros de Gustav Klimt roubados de sua família pelos nazistas. Os direitos de imagem não eram preocupação. Mas porque o filme foi rodado quase inteiramente em Viena e o quadro está em Manhattan desde 2006, a solução foi usar outra "mulher de dourado".

"Alguém nos contou sobre um cara que havia obtido permissão para fotografar os quadros de Klimt, quando eles souberam que eles sairiam da cidade", disse Jim Clay, o diretor de arte do filme. "Conversamos com ele e fechamos um acordo, e imprimimos suas fotos sobre tela". Em seguida, o artista Steve Mitchell, veterano pintor de cenários, recriou o quadro principal.

"As pessoas podem perguntar por que precisamos pintar sobre a gravura que já temos", diz Clay. "Mas a pintura de Klimt é incrivelmente tridimensional. A câmera percorreria a superfície do quadro. Se fosse uma gravura, plana, o telespectador perceberia".

Neue Galerie New York/"The New York Times"
"Retrato de Adele Bloch-Bauer I" (1907), de Gustav Klimt

Mitchell fez mais que copiar o original. "Eu usaria o termo 'falsificar'", ele comentou, rindo. "Já produzi muitos quadros famosos para filmes, antes, mas este foi um pouco mais desafiador". Parte do desafio era o prazo - Mitchell teve cinco semanas, Klimt três anos. A outra parte era a textura.

"Tive de aplicar três ou quatro camadas de gesso", disse Mitchell, se referindo à pasta usada por artistas, "e adensá-lo e adensá-lo antes que pudesse começar a pintar. Tive de copias as áreas sobre as quais Klimt pintou novas camadas e mudanças, mas onde ainda era possível perceber a textura original por sob a nova tinta. Eu estava tentando ficar o mais perto que podia da pintura original e da douração, com folhas de ouro de 24 e 22 quilates".

Outro obstáculo se relacionava à tela sobre a qual o fotógrafo austríaco Manfred Thumberger havia impresso o quadro.

Robert Viglasky/The New York Times
Henry Goodman e Tatiana Maslany no filme
Henry Goodman e Tatiana Maslany no filme "A Mulher de Ouro" com réplica de "Retrato de Adele Bloch-Bauer I", de Gustav Klimt

"Eu não sentia que a tela tinha textura suficiente, ela era fina demais", disse Mitchell, que comentou que as telas de pintura mudaram com o tempo. Mitchell esteve pintando "quadros do tipo Rembrandt" recentemente, para uma minissérie baseada em "Guerra e Paz", e "usei telas muito, muito rústicas, quase material de sacaria, porque pintores como Van Dyck e Rembrandt costumavam usar telas com muito mais irregularidades, nós e falhas. As telas modernas têm entrelaçamento muito firme e parecem muito mecânicas".

Dado o tempo que os quadros ocupam nas telas durante os filmes de ficção, cuidados como esses podem parecer exagero. "Há muita diferença entre filmes como esses e, por exemplo, documentários sobre pintura", disse David D'Arcy, crítico de arte e cinema e produtor do documentário "Portrait of Wally" (2012), sobre um caso bem semelhante ao de Maria Altmann, só que com pintura de Egon Schiele. "A arte serve ao interesse do drama, de modo que você está olhando para um quadro, mas nesse tipo de filme o quadro não está lá para ser o principal objeto de atenção".

Robert Hewison, historiador cultural radicado em Londres e autoridade sobre os artistas pré-rafaelitas, serviu como consultor em "Effie Gray", drama escrito por Emma Thompson que estreia em 3 de abril nos Estados Unidos e examina o casamento não consumado entre o crítico de arte John Ruskin (Greg Wise) e sua mulher muito mais jovem (Dakota Fanning), no século 19. O filme usa algumas reproduções mas também muitas das obras de arte que Ruskin defendeu, e Hewison se surpreendeu com a meticulosidade das filmagens, especialmente algumas das sequências passadas em Veneza, nas quais os desenhos de Ruskin só servem como decoração de fundo.

"Eles dedicaram muito esforço a detalhes ínfimos", disse Hewison, "todos os quais muito difíceis de distinguir".

Ao mesmo tempo, ele diz, a inclusão de arte real "dá mais lustro ao filme –lustro no sentido literal, se pensarmos nas pinturas dos pré-rafaelitas. Há uma espécie de linguagem virtual ao estilo Merchant e Ivory, e muito prazer".

Aos quadros de "Effie Gray" foram fotografados por Tony Pierce-Roberts, veterano das produções de Merchant e Ivory e um dos envolvidos em "Os Amores de Picasso" (1996), um filme notório pela ausência de arte, já que nenhuma peça produzida, ou mesmo possuída, por Pablo Picasso pôde ser usada. Depois das filmagens, Pierce-Roberts visitou a exposição "Picasso and Portraiture", que aconteceu naquele mesmo ano no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA).

"E eu pensei, meu Deus, se pudéssemos ter mostrado aquilo no filme", ele comentou. "Um espectador que já não conhecesse o trabalho de Pìcasso sairia do filme certamente sem aprender nada mais sobre isso".

Tony Pierce Roberts/"The New York Times"
Detalhe da pintura
Detalhe da pintura "The Return of the Dove to the Ark", de John Everett Millais, que aparece em "Effie Gray"

Um ano depois que começou a rodagem de "Effie Gray", o produtor Donald Rosenfeld convidou Pierce-Roberts a participar do projeto. "Por alguma razão, eles não tinham obtido permissão para filmar os quadros e eu tive de usar reproduções, que não ficaram muito boas", disse Pierce-roberts. "Eu fiz muita coisa desse tipo, e por acaso sabia que havia uma grande exposição pré-rafaelita na Tate". A equipe dele recebeu 12 horas de prazo para filmar os quadros de que precisavam, e essas imagens foram posteriormente inseridas digitalmente em cenas gravadas previamente.

Leigh disse que em qualquer filme sobre arte e artistas, a questão de que obras o diretor tem ao seu dispor "é uma questão muito diferente" daquilo que ele venha a fazer com essa arte. "Há preocupações dramáticas e preocupações cinematográficas", por exemplo como fazer com que os quadros pareçam quadros. Davies e o diretor de câmera Dick Pope, conta o cineasta, tomaram conta desses problemas de maneiras que ele não teria conseguido antecipar. Sua tarefa era contar a história.

"Tudo que posso dizer agora", ele diz, "depois de alguns anos, é que se alguém tivesse me perguntado se ver os quadros seria essencial, minha resposta seria sim".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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