Folha de S. Paulo


Diário de Lisboa - Literatura de manicômio

Foi há cem anos, no dia 24 de março de 1915, que o primeiro número da revista "Orpheu" foi publicado. Tinha como diretores o poeta português Luís de Montalvor e o brasileiro Ronald de Carvalho. Identificados numa carta de Fernando Pessoa: o primeiro, como "amigo íntimo de Mário de Sá-Carneiro" e, o segundo, como "um dos mais interessantes" poetas brasileiros da época.

Na época, este primeiro número esgotou e provocou escândalo. Numa carta ao açoriano Armando Cortês-Rodrigues, Fernando Pessoa contava: "Somos o assunto do dia em Lisboa, sem exagero lho digo. O escândalo é enorme. Somos apontados na rua, e toda a gente –mesmo extraliterária– fala do 'Orpheu'". Meses depois, no final de junho, saía o número dois, já dirigido por Pessoa e Sá-Carneiro, que, juntamente com Almada Negreiros, fizeram dela a revista "mítica" e emblemática do Modernismo português.

Os jornais da época intitularam a publicação como "literatura de manicômio"; uma notícia do jornal "O Intransigente" intitulava-se "A Caminho do Manicômio" em finais de março de 1915. No jornal "A Capital" um crítico escrevia: "O que se conclui da leitura dos chamados poemas subscritos por Mário de Sá-Carneiro, Ronald de Carvalho, Álvaro de Campos e outros é que eles pertencem a uma categoria de indivíduos que a ciência definiu e classificou dentro dos manicômios, mas que podem sem maior perigo andar fora deles".

"100 ORPHEU"

Para se saber tudo o que se passou nesse ano, acaba de ser publicado em Portugal, pela editora Tinta-da-China, o volume coletivo "1915 - O Ano de 'Orpheu'", organizado por Steffen Dix. E foi aberta a exposição "Os Caminhos de Orpheu", organizada por Richard Zenith na Biblioteca Nacional de Portugal, com originais de Pessoa, Sá-Carneiro e outros colaboradores, cartas, publicações da época e obras de artes plásticas de Almada Negreiros, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza Cardoso.

Entre as inúmeras iniciativas das comemorações está também "100 Orpheu", o congresso internacional luso-brasileiro que decorreu nesta semana em Lisboa e irá acontecer no Brasil, de 25 a 28 de maio, na USP (100orpheu.com).

OUTROS MITOS

O sociólogo e historiador José Barreto tem lutado contra teses que considera delirantes e que apontam o escritor Fernando Pessoa (1888-1935) como reacionário e adepto convicto do ditador Salazar (1889-1970), defendidas pelo professor e escritor marxista Alfredo Margarido (1928-2010) que Barreto considera ter-se "empenhado numa tentativa de fascistização póstuma do pensamento de Pessoa".

No livro que acaba de publicar, "Fernando Pessoa - Sobre o Fascismo, a Ditadura Militar e Salazar" (Tinta-da-China), Barreto reúne "todos os escritos de Pessoa que foi possível recensear, entre os ainda numerosos inéditos do escritor e a obra publicada em vida ou postumamente, versando sobre três temas principais: o fascismo e a figura de Mussolini, a ditadura militar portuguesa (1926-33) e, por fim, Salazar, enquanto ministro das Finanças (1928-32), e depois líder do governo e do Estado Novo".

Pessoa foi cortejado pelo poder, mas faltou em 1935 à entrega do prêmio do Secretariado da Propaganda Nacional ao seu livro "Mensagem" e fez poesias satíricas a pensar em Salazar, que o acusou de ter afastado de si "o resto da inteligência portuguesa, que ainda o olhava com uma benevolência já um pouco impaciente e uma tolerância já vagamente desdenhosa".

À MÍNGUA DE POETAS

Esta semana escreveu-se nos obituários dedicados ao poeta Herberto Helder (1930-2015) que "não há na poesia portuguesa pós-Pessoa nenhum poeta que tenha exercido um tal poder de atração e gerado tantos epígonos". Agora que o autor de "A Morte sem Mestre" morreu, haverá alguém capaz de ocupar o seu lugar?

No passado Dia Mundial da Poesia foi publicado o "Anuário de Poesia de Autores Não Publicados 2015", da Assírio & Alvim. Foram editados quatro números entre 1984 e 1987 que deram a conhecer alguns dos melhores poetas de hoje, como Maria do Rosário Pedreira ou Adília Lopes. Mas este anuário é, agora, um livro fininho.

O júri recebeu 2.154 poemas enviados por 223 autores, mas, seus membros escrevem no prefácio, "a leitura destes poemas revelou, com pouquíssimas exceções, um imaginário poético débil". O livro tem 53 páginas, com 15 poemas dos 7 poetas escolhidos. Lá se foi a ideia de sermos uma nação de poetas. Desapareceram os mitos.

ISABEL COUTINHO, 48, é repórter do jornal português "Público".


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