Folha de S. Paulo


A luso-carioca Matilde Campilho vai à Flip

RESUMO A portuguesa Matilde Campilho encontrou-se com sua poesia no Rio de Janeiro, onde chegou para passar 15 dias e ficou três anos. Entre Portugal e Brasil, ela lança seu festejado livro "Jóquei", em São Paulo, no dia 16. Em maio, volta à cidade para um evento de poesia luso-portuguesa. E, em julho, participa da Flip.

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Em pequena, Matilde Campilho nadava no rio de sua aldeia –no caso, uma fazenda a uma hora e 15 minutos de Lisboa. O Tejo não era mais belo que o rio de sua aldeia porque era o rio de sua aldeia. Ali já não eram salgadas, como são na Lisboa natal da escritora de 32 anos, as águas que banham uma parcela considerável da poesia portuguesa.

Essa vida aprendendo os riscos de ser levada ao "fundão" do rio, observando o ciclo de bichos-da-seda nas amoreiras e catando nêsperas da árvore durou até os 16 anos e antecipou parte das qualidades da poesia de Matilde.

Carregado, por um lado, de referências telúricas, que juntam num mesmo poema espadartes e um jaguar, e, por outro, de geografias urbanas, de um Rio de Janeiro conhecido a um Brooklyn imaginado, "Jóquei", seu livro de estreia, trará a autora a São Paulo para o lançamento, no dia 16, da edição brasileira, que sai pela 34.

Vera Sepúlveda
A escritora, fotografada em Portugal, onde vive hoje
A escritora, fotografada em Portugal, onde vive hoje

Ela passa de novo pela cidade em 29 de maio, para um evento que reunirá poetas brasileiros e portugueses, na Biblioteca Mário de Andrade –no qual vai falar ao lado do carioca Carlito Azevedo, que, como se verá, teve papel fundamental nesta história.

Por fim, em julho, chega a Paraty, para participar da 13ª Flip.

Em Portugal, onde foi lançado há um ano, seu livro tornou-se um sucesso tão instantâneo quanto inesperado: a Tinta-da-China colocou na praça 2.000 exemplares, em três tiragens, do volume que integra a coleção organizada pelo também poeta Pedro Mexia.

"São números muito invulgares para um livro de poesia, e quase inéditos num livro de estreia", diz Mexia, que atribui o sucesso de "Jóquei", pelo lado dos leitores, ao aspecto "fascinante" de sua poesia; e, pelo da crítica, ao jeito "desalinhado" dos poemas. Ele frisa a "alegria (emocional, existencial, verbal)" dos versos, "que a distinguem da inclinação melancólica, desconsolada, ou então niilista, de alguma poesia portuguesa".

"Cheio de alegria" é também como o define o editor de "Jóquei" na 34, Cide Piquet. Ele chegou a Matilde Campilho, como boa parte de seus leitores brasileiros, pelas mãos de Carlito Azevedo, numa postagem de Facebook.

Curioso, escreveu à autora, que lhe mandou um exemplar de "Jóquei". "Passei um mês carregando para todo lado, lendo, relendo, mostrando para os amigos."

"A poesia dela me impressiona por vários motivos. Pela força da imaginação, no sentido propriamente poético, isto é, criativo e metafórico; pela profusão e riqueza de imagens; e pelo alto grau de consciência de si e do mundo –é uma poesia deslumbrante, mas não deslumbrada, o que evita o perigo comum de cair no sentimentalismo", elenca Piquet.

BUSCA

É nítida a alegria desse "álbum de verão", como o classificou Mexia na orelha da edição portuguesa, em que até literalmente se desafia o inverno (em "Sagetrieb": "Inverno que queres matar-me ao chapadão/ encher-me a cabeça de domingos/ e alinhar meu olho aos escaparates/ desenhados pelo maldito imperador/ que abandonou os sorvetes e os 5 sóis/ Vais ver se eu não dou cabo de ti primeiro"). Mas não é tola. Isso porque sua força solar não nasce da satisfação, mas de seu oposto, aquela fome que leva à busca.

"Susan Sontag diz que um escritor talvez seja alguém que presta atenção ao mundo. O poeta talvez seja alguém que, além de prestar atenção, se espanta com o mundo, e, especialmente, consegue fazer a linguagem se espantar com ele, dar saltos", diz o editor brasileiro.

O espírito de quem procura somente o encontro é o que anima Matilde Campilho. "Gosto de andar pela rua, mesmo que seja para lugar nenhum. Os lugares vão aparecendo ao longo do caminho."

A errância marca sua biografia. Matilde estudou letras modernas em Portugal, depois história da arte na Itália. Por motivos profissionais, viveu em Madri, mas não se achou ali, porque não tinha água por perto, e em Moçambique, fazendo trabalhos voluntários.

Por muito tempo, ao preencher fichas que pediam sua profissão, deixava a lacuna. "Acho que eu estava deixando esse espaço em branco dentro de mim também."

Até chegar ao Rio, em 2010.

"Durante muitos anos, cada amigo meu que ia ao Rio me ligava de lá dizendo que eu precisava ir a essa cidade. Que tinha muito a ver comigo. Eu não entendia por quê, mas a verdade é que aquilo ficava martelando a minha cabeça."

Foi "adiando essa viagem", que, intuía, seria como os "grandes amores, aqueles aos quais a gente sabe de antemão que vai se ligar para sempre". "Teve um dia que fui e pronto. Fui para ficar 15 dias. Fiquei três anos. E mudou tudo."

Na adolescência escrevia "umas coisas, uma espécie de contos" e tinha tido uma primeira pista de uma "familiaridade qualquer" com poesia ao ouvir, na voz de uma "amiga muito mais velha", o poema "Um Adeus Português", de Alexandre O'Neill. Hoje acha que a ida ao Rio ajudou a entender sua forma de aproximação ao papel.

"Quando somos estrangeiros estamos mais permeáveis a tudo, inclusive à verdade de nós mesmos. Estamos mais atentos e mais focados. Quando eu cheguei não conhecia ninguém. Então quem me acompanhava era a paisagem. Os acontecimentos diários da cidade."

Num determinado momento, parte das caminhadas ganhou a companhia de Carlito Azevedo. Os dois se encontraram numa festa, lembra ele, "um lançamento em Laranjeiras", detalha ela, que já conhecia o trabalho do autor de "Monodrama" antes da viagem.

Carlito conta que logo ficaram amigos. "Passamos a fazer longos passeios pelo centro. Passeios em que a poesia não era nem o principal assunto. Conversávamos muito sobre descobertas científicas e as árvores do Jardim Botânico. Havia também as paradas obrigatórias no sebo Berinjela e na biblioteca do Instituto Cervantes, lugares de, aí sim, conversar a sério, ou seja, rindo muito, sobre escrever."

Ele, que é professor em oficinas literárias há anos, recusa a ideia de uma relação de mestre e aluna. "Eu apenas a levei a sério. E consegui que ela levasse a sério também algo que ela considerava 'meros jogos'", diz. O empurrão nasceu num passeio, recorda ele. "Ela me mostrou finalmente seus poemas, inclusive 'Fur', que abre o 'Jóquei' e me impressionou de imediato."

Foi assim, além-mar, que se desenhou a estreia de Matilde como autora. Em 25 de fevereiro de 2012, "Fur" estampava a página "Risco", seção mensal de poesia que Carlito edita no suplemento "Prosa & Verso" do jornal "O Globo".

Mais adiante, teria publicados na "Ilustríssima" dois outros poemas de "Jóquei". "We Never Did too Much Talking Anyway" e "Conversa de Fim de Tarde Depois de Três Anos no Exílio" saíram na "Imaginação" de 29 de dezembro de 2013 (folha.com/no1390637 ).

Àquela altura, Matilde já havia mandado o livro para algumas editoras no Brasil, sem resposta.

"Pensei: eu preciso fechar isso. Se ele não for publicado, tudo bem. Eu só precisava fechar, para poder começar alguma coisa diferente. Então transformei o 'doc' em 'pdf' e guardei numa pasta. Dei tchau para ele, e esse momento foi muito importante. Uns dias depois me escreveu o Pedro Mexia. Tinha visto alguns poemas meus nos jornais brasileiros e queria saber se eu teria mais alguma coisa. Respondi: 'Olha, tem isso aqui'."

Mexia recorda ter ouvido falar dela por outro poeta, José Tolentino Mendonça. "Creio que já me tinha cruzado com os poemas da Matilde em sites, na altura em que procurava um jovem brasileiro para a coleção. Pensei que a Matilde fosse também brasileira, porque não a conhecia, e os poemas pareciam 'brasileiros', na grafia e no estilo, bastante vivo e desenvolto."

A "dimensão mestiça" dos poemas, frisa o editor, "é essencial".

Nesse vaivém atlântico, "Jóquei" acabou sendo um pouco mais português em Portugal, um pouco mais brasileiro no Brasil. Lá, foram feitas leves adaptações "para uniformizar critérios de grafia", diz Mexia, como aqui, para, "para devolver um pouco da brasilidade que já existia", diz Piquet. Sempre com a palavra final da autora. "É o mesmo livro", diz ela.

Ter um pé em cada lado do oceano lhe deu essa escrita miscigenada naturalmente. "Difícil para mim é não escrever nesse sotaque misturado. Para isso, sim, eu preciso me concentrar", diz Matilde.

Quando lê poesia, o faz com acento luso, mesmo se for dizer "ônibus", em vez de "autocarro".

Sua dicção particular –da qual há uma mostra no depoimento que ela dá à série "Retratos", da cineasta Clara Cavour (vimeo.com/97003855 )– reforça o tom encantatório de seus poemas, a "qualidade melódica dos versos, que parecem pedir para ser lidos", no dizer de Cide Piquet. O leitor pode conferir por si, no link da "Ilustríssima", no qual há também pequenos vídeos feitos pela autora.

Mas essa prosódia bastarda é o que haverá de mais nitidamente pessoal na poesia de "Jóquei", livro em que a autora alcança um feito bastante difícil: descolar o eu-lírico do poeta que o cunha.

Sua voz é ora masculina, ora feminina, muitas vezes sem gênero. "Eu acredito na poesia como uma voz universal", reforça Matilde.

Com liberdade, o livro se arma sobre personagens, nomes de bairros, animais e, aqui e ali, referências mais ou menos escondidas a poetas como Ezra Pound e Wallace Stevens. No meio disso tudo, é vão procurar a figura da autora.

O caráter quase ficcional é algo que Carlito Azevedo destaca como característico da poesia de Matilde. "Ela cria nanonarrativas dentro dos poemas. A importância que ela dá aos personagens secundários, cuja existência por vezes não passa de um verso, revela uma generosidade. É assim que, pelos dois segundos de 'vida' que ganham dentro do livro, acabam adquirindo uma dimensão enorme em nossa mente o jogador de críquete, o esgrimista uruguaio, os astrofísicos, as concierges e a faxineira Maria Teresa, entre outros."

Ele soma a isso o "estilo enumerativo", que Matilde "pratica de modo absolutamente feliz, muito porque é uma grande leitora de Whitman, muito porque ao seu olhar tudo é interessante".

"Há um olhar que capta e reúne e enumera toda a imensa variedade de coisas sobre a Terra (não me parece uma poeta que diga 'não' a nada) e há, imediatamente, uma imaginação que vai inventando uma biografia para cada coisa."

FRANCESCA ANGIOLILLO, 42, é editora-adjunta da "Ilustríssima".


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