Folha de S. Paulo


Leia trecho do romance "O Rosto de um Outro", de Kobo Abe

SOBRE O TEXTO O trecho abaixo integra o romance "O Rosto de um Outro". Publicada originalmente em 1964 e transposta para o cinema por Hiroshi Teshigahara em 1966 como "O Rosto da Maldade", a obra terá sua primeira tradução no Brasil lançada pela Cosac Naify no mês que vem.

*

O acúmulo das noites de insônia transformou-se num caroço que começou a se expandir em meu cenho e, quando a dureza do banco se tornava quase insuportável, fui finalmente conduzido pela enfermeira ao aposento adjacente. A claridade estagnada que atravessava o toldo era de uma brancura leitosa. Embora não houvesse seringa, outros instrumentos igualmente ameaçadores, alguns pouco familiares, enfileiravam-se sobre a escrivaninha, e ao lado desta ficavam um arquivo de prontuários médicos e uma cadeira giratória. Frente a frente com esta última, uma cadeira giratória para o paciente. Um pouco mais adiante, um biombo com estrutura de ferro e um cesto sobre armação provida de rodinhas para as roupas despidas por pacientes O conjunto, perfeitamente previsível, me deprimiu ainda mais.

Acendi um cigarro. Ergui o corpo à procura de um cinzeiro e me sobressaltei ao avistar o conteúdo de um prato esmaltado sobre a escrivaninha. Uma orelha, três dedos, um punho, uma face desde a pálpebra até os lábios os itens estavam expostos de maneira descuidada, vívidos como órgãos recém-mutilados. Comecei a sentir-me nauseado. Pareciam mais reais que os reais. Eu nunca havia imaginado que "réplicas exatas" fossem tão atrozes. Bastava observar o corte para ter a certeza de que eram apenas modelos de plástico, mas de repente pareceu-me que chegava a sentir o cheiro desagradável da morte.

Veridiana Scarpelli

De repente, o sr. K surgiu de trás do biombo. Contrariando o que eu esperava, tem uma aparência gentil, o que me faz respirar aliviado. Cabelos ralos e crespos, óculos sem aro de lentes grossas como fundo de garrafa, queixo carnudo Além do mais, havia em torno do sr. K um odor de substâncias medicinais familiares.

Mas agora foi a vez de o sr. K ficar perturbado. Com expressão atarantada, examinava ora meu nome no cartão de visitas em sua mão, ora meu rosto, momentaneamente incapacitado de falar.

- Isto significa que o senhor -disse o sr. K, interrompendo- se em seguida, observando uma vez mais meu cartão de visitas e continuando depois a falar num tom diferente e mais contido do que quando conversáramos ao telefone- veio me procurar na qualidade de paciente?

De paciente, sem dúvida. Mas, por mais avançada que fosse a capacitação técnica do sr. K, ela não seria suficiente para satisfazer a minhas expectativas. Quando muito eu poderia contar com alguns conselhos. Por outro lado, revelar tudo francamente e ofendê-lo seria uma atitude imatura. Imaginando talvez que eu tivesse me calado por estar constrangido, o sr. K continuou em tom bondoso:

- Sente-se, por favor Que foi que lhe aconteceu?

- Fui atingido por uma explosão de ar líquido ao fazer uma experiência, entende? Acho que me descuidei, porque estou habituado a trabalhar com nitrogênio líquido e

- Queloides?

- Em todo o rosto, como o senhor pode ver. Parece que meu tipo físico favorece essa reação. Tanto assim que o médico que cuidava de mim declinou de toda responsabilidade.
Disse que qualquer falha na maneira de tratar as cicatrizes provocaria o surgimento de novas lesões.

- Mas parece que nada aconteceu em torno dos lábios, não é?

Removi os óculos, aproveitando o rumo da conversa, e disse:

- Por sorte os olhos também se salvaram. Felizmente, estava com meus óculos de miopia.

- Foi sorte, realmente! -disse o sr. K com entusiasmo, como se o problema fosse dele. - Seja qual for a situação, olhos e lábios são importantes Os dois precisam manter o movimento Caso contrário fica impossível disfarçar, por mais que a forma seja perfeita.

Pelo jeito, o sr. K era um profissional dedicado. Enquanto me olhava fixamente, sua mente já parecia preparar um esboço. Mudei depressa de assunto para não desapontá-lo:

- Li o artigo que o senhor escreveu. É do verão do ano passado, se não me engano.

- Isso mesmo, do ano passado.

- Pois o seu trabalho me espantou. Nunca imaginei que fosse tão requintado.

Aparentando satisfação, o sr. K apanhou um dedo macilento, depositou-o na palma da mão e o fez rolar com cuidado:

- Este é um trabalho que exige muita perseverança. Vê como a impressão digital na ponta do dedo não difere em nada de uma real? Por causa disso, recebi um pedido inusitado da polícia: eles querem que eu a registre

- O senhor também faz os moldes em gesso?

- Nada disso, uso pasta de silicone. O gesso não captura minúcias Está vendo como reproduziu com nitidez até esse pedacinho de pele levantado na base da unha?

Ao pegar a peça temerosamente com a ponta dos dedos, percebi que era viscosa como um ser vivo e, embora soubesse que não passava de um artefato, fiquei horrorizado ao pensar que poderia ser infectado pela morte.

- Isto me parece até sacrílego

- De todo modo, o corpo humano não passa disso

Demonstrando orgulho, o sr. K apanhou outro dedo e o depositou em posição vertical sobre a escrivaninha, com o corte voltado para baixo. Pareceu-me que um morto havia rompido o tampo da escrivaninha e espetado o dedo no ar.

- O segredo é dar ao acabamento esse aspecto meio sujo. Quando você procura atender às demandas perfeccionistas dos clientes, acaba produzindo algo totalmente incoerente Por exemplo, este é um dedo médio, de modo que acrescentei uma nódoa no lado interno da falange. Dá a impressão de uma mancha de nicotina, não dá?

- Foi pintado com um pincel ou algo parecido?

- Nem pensar -disse o sr. K, rindo alto pela primeira vez em nosso encontro. - Ora, se eu fizesse isso, desbotaria num instante, não é? De baixo para cima, vou sobrepondo materiais de cores diferentes. Por exemplo, acetato de vinila para a área das unhas Se for preciso, um pouco de sujeira debaixo das unhas sombra na área das articulações e nas rugas um leve tom azulado bordejando vasos sanguíneos... e por aí vai.

- Isto é um objeto de arte. Não é trabalho para qualquer um

- Concordo -disse K, imprimindo movimentos miúdos e nervosos ao joelho-, mas isto é rudimentar se comparado à confecção de um rosto. Um rosto representa sempre o máximo da complexidade Para começar, existe esse transtorno chamado expressão facial, não é? Pois, veja bem, toda ruga ou saliência de apenas um décimo de milímetro,
quando sobreposta a um rosto, se transforma de imediato em algo muito significativo

- Mas não há como fazê-lo mover-se, certo?

- Ah, isso é impossível -disse K, descruzando as pernas e reposicionando-se. - No momento, o máximo que consigo é cuidar do aspecto externo do rosto, não me sobra tempo para pensar em movimentos. De modo que o único jeito é ir preenchendo aos poucos, escolhendo áreas que quase não se movem. Além disso, temos outro transtorno que é a questão da porosidade. No seu caso, por exemplo, embora não possa afirmar nada sem um exame direto noto, mesmo por cima das bandagens, que o senhor transpira muito Acredito que suas glândulas sudoríparas sobreviveram. E, se continuam ativas, não convém recobrir o rosto inteiro com algo não poroso. Isso não só lhe será nocivo do ponto de vista fisiológico como também, e principalmente, terá um efeito sufocante, não lhe será possível suportar o material nem durante a metade de um dia. Melhor mesmo é não radicalizar nessas questões. Veja bem: um velho com dentes imaculadamente brancos como os de uma criança se tornaria ridículo. Muito mais eficaz do que isso é fazer retificações quase imperceptíveis ao olhar alheio O senhor é capaz de remover sozinho essas bandagens?

KOBO ABE (1924-93) escritor e dramaturgo japonês.

LEIKO GOTODA, 74, tradutora, responde pelo texto de edições brasileiras de autores japoneses como Haruki Murakami e Kenzaburo Oe.

VERIDIANA SCARPELLI, 37, ilustradora, é autora de "O Sonho de Vitório" (Cosac Naify).


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