Folha de S. Paulo


Arquivo aberto - Novelas e vanguardas

São Paulo, 1978

R. Henrique SChaumann, 81, quarto andar, esquina com Rebouças, Studio-house Granato.

Nessa época havia muita atividade na cultura. O sistema político estava mais leve. Na área cultural, nos museus e na Bienal, de um lado estava Aracy Amaral, como a dona da verdade, e de outro o grande Walter Zanini (morto em 2013), com uma visão ampla e bem resolvida. Críticos como Carlos von Schmidt, Jacob Klintowitz e Casemiro Xavier de Mendonça abriam as ações contemporâneas.

Acervo pessoal
À esq., Lygia Pape e Ivald Granato (fantasiado de Ciccillo Matarazzo) e Helio Oiticica na
À esq., Lygia Pape e Ivald Granato (fantasiado de Ciccillo Matarazzo) e Helio Oiticica na "Mitos Vadios"

As coisas eram bem movimentadas no meu estúdio, junto ao Massao Ohno, editor inteligentíssimo. Vivíamos na produção de belos livros de poetas novos e alguns clássicos, como Hilda Hilst. Catálogos com novas concepções e Otávio Pereira acabando de chegar de Los Angeles, vindo da Tamarind, maior impressora da época, que imprimia Jaspers Johns, Andy Warhol, Lichtenstein.

Resolvi fazer um trabalho aberto sem restrições por sentir o novo tempo e dar uma guinada, precisávamos disso! Comecei a fazer convites aos artistas para esse movimento, Aguilar, Tozzi e Oiticica, que morava no Rio, ficou encantado na hora e já foi me dizendo: "Me convide pra ficar na sua casa que te ajudo." Pronto, aí começou!

Oiticica ficou hóspede em casa. A essa altura, os artistas já se produziam. O movimento no studio-house era intenso. Entra e sai, busca de apetrechos, músicos, atores, modelos e Lygia Pape chegou para dar uma força a Hélio, que estava um pouco doente e adorava novela. Ele se trancava no quarto com a minha mulher, Laís, e com a Lygia para que ninguém soubesse da sua paixão por "Dancing Days". Era proibido intelectual ver novela.

Minha mãe fez até uma bota de papel, estilo "Dancing Days", para colocar na porta de seu apartamento no Rio, onde a gente dava festas com o tema da novela.

O movimento, além das crianças e do nosso cachorro Phill, era uma loucura. Uma verdadeira produção rock'n'roll; 24 horas com muitas pessoas articulando diferentes assuntos, todos pertinentes ao happening que seria "Mitos Vadios". Estamos falando de um alto fluxo de artistas de vários setores com ideias explodindo, e as excitações em alto volume ao som dos Stones, comandado por Guará, Guaracy Rodrigues, cineasta e ator ímpar dos anos 1970 e 80, morto em 2006.

O estúdio era dividido em vários cômodos, como labirintos, cada um com seus acontecimentos a mil até o dia clarear. Muitos amigos jornalistas participavam, como o Marcelo Kahns. Podia encontrar Tozzi na campainha, Tadeu Jungle e Walter Silveira com suas máquinas novas de vídeo, Lenira provando algumas roupas ou sem elas, Dudi Guper, Raul Seixas e Ney Matogrosso, Jô Soares, enfim um mundo. Zé do Caixão esporadicamente era babá dos meus filhos.

Tirávamos o sossego da rua Henrique Schaumann, 81, quarto andar, dentro e fora. Um momento de grande fluído. Esther Emilio Carlos, curadora e crítica de arte, chegando de peruca, Massao Ohno, Gerchman, Rui Pereira fazendo programação gráfica. Trocas de roupas. Decisões preciosas.

Telefone tocando, criança, música, tudo ao mesmo tempo.

Para "Mitos Vadios", foram 30 os artistas convidados e mais umas 100 pessoas de grupos de dança e outras linguagens querendo maiores informações de como criar uma grande produção. A fotógrafa Loris Machado registrando tudo.

E não é que no dia 5 de novembro pela manhã desabou a maior chuva de todos os tempos? E o bueiro em frente ao apartamento estourou, abrindo um buraco imenso. Todos entraram em pane e tivemos que transferir o evento para a semana seguinte. Sendo assim, foi mais uma semana dobrando o esquema, as coisas dobravam em confusão e alegria. E assim aconteceu "Mitos Vadios", o dia todo, em um estacionamento na rua Augusta.

IVALD GRANATO, 66, é artista plástico. No sábado (28), às 11h, ele revive a performance "Quando Cortei Meu Cérebro", de 1987, na exposição "Registro Arte Performance", retrospecto de sua obra em cartaz até 10/5 na Caixa Cultural São Paulo.


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