Folha de S. Paulo


A imaginação de Terry Pratchett virou do avesso a tradição fantástica

Um dos fenômenos mais esquisitos da cultura pop do século 20 foi a avidez com que o movimento hippie abraçou "O Senhor dos Anéis", clássico de fantasia do católico conservador britânico J.R.R. Tolkien (1892-1973). Pode ser que os adeptos da contracultura tenham se identificado com a defesa de uma vida mais simples e próxima da natureza, típica dos hobbits de Tolkien, mas um ponto de contato mais subversivo provavelmente foi a "erva-de-cachimbo" que costuma ser fumada pelo mago Gandalf no romance, vista pelos hippies como maconha disfarçada.

Essa hipótese, claro, é completamente furada -Tolkien explica no próprio livro que a tal erva não passa de tabaco. Seria preciso esperar algumas décadas para que magos de narrativas de fantasia colocassem substâncias mais fortes em seus cachimbos -mais precisamente até 1983, quando o também britânico Terry Pratchett publicou "A Cor da Magia".

Jesse Wild - 3.jun.2011/SFX Magazine/Getty Images
Terry Pratchett, autor da série
Terry Pratchett, autor da série "Discworld", que morreu no dia 12

O título do livro de estreia do Discworld (Mundo do Disco), universo ficcional criado por Pratchett, já é, por si só, um achado psicodélico -a tal cor da magia é a octarina, a "oitava cor", um "roxo-amarelo-esverdeado fluorescente" que só existe no espectro luminoso do Disco. A maluquice estava só começando.

Pratchett, que morreu no dia 12 de março aos 66 anos, acabaria publicando outros 39 romances sobre o Discworld, sem falar em suas demais obras de ficção -juntas, somam até agora 85 milhões de exemplares vendidos, em 37 línguas, e o contador continua girando. Essas dezenas de livros mostraram que era possível subverter a grandiloquência e os clichês da fantasia produzida pelos sucessores de Tolkien de forma a criar histórias hilariantes, mordazes e imprevisíveis.

ASSESSOR NUCLEAR

Paradoxalmente (ou talvez não tão paradoxalmente; há paralelos com a literatura brasileira, afinal), o bestiário fantástico do Discworld nasceu quando Pratchett tinha um emprego de natureza relativamente burocrática, o de assessor de imprensa do CEGB, estatal britânica da área de geração de energia.

O único elemento de aventura (no mau sentido) relativo ao cargo era a presença de quatro usinas nucleares na região onde o autor trabalhava, numa época em que o público ficava cada vez mais desconfiado em relação à energia atômica. "Eu escreveria um livro a respeito das minhas experiências [na empresa], se achasse que as pessoas iam acreditar", brincou certa vez Pratchett.

Antes de "A Cor da Magia", ele tinha publicado um romance de fantasia e duas obras de ficção científica, escrevendo nas horas vagas enquanto atuava como repórter em publicações do interior.

Nascido em Beaconsfield, cidadezinha inglesa de 12 mil habitantes, Pratchett tivera uma formação despretensiosa. Tornou-se jornalista logo depois de concluir o ensino médio e costumava dizer que tinha se educado frequentando a biblioteca pública da cidade natal. Pensou em ser astrônomo, mas desistiu diante das suas dificuldades com matemática (um asteroide descoberto em 2002 acabaria sendo batizado como 127005 Pratchett,em sua honra).

Coincidência ou não, os elementos astronômicos são os primeiros a deixar claro que o Discworld não é nenhuma Terra-média. Vários dos livros da série começam apresentando a cosmologia doida do Disco, um planeta de formato achatado que se apoia nos dorsos de quatro super-elefantes, os quais, por sua vez, viajam pelo éter montados na carapaça da Grande A'Tuin, uma tartaruga estelar (nome científico: Chelys galactica) de 15 mil km de comprimento.

Uma das grandes controvérsias acadêmicas entre os grandes magos da Universidade Invisível, principal instituição de ensino superior do Disco, é o que exatamente aconteceria caso chegasse a época de acasalamento do réptil cósmico.

Na superfície do Discworld propriamente dito, a luz se propaga de um jeito preguiçoso, muito mais lerdo que o da luz do nosso universo, incluindo em seu espectro a famigerada octarina (implicações desse fato são minuciosamente discutidas por Pratchett nos volumes da série "A Ciência do Discworld").

O planeta-pizza é habitado por versões satíricas de personagens que costumam povoar os mundos de fantasia "sérios", como anões, trolls, bruxas e guerreiros (o mais famoso deles é Cohen, o Bárbaro).

Mas Pratchett sempre foi ecumênico quando o assunto é humor, de modo que o Disco também abriga variantes mágicas e ridículas do Egito dos faraós, da Grécia Antiga e do Leste Europeu durante a Guerra Fria. E, apesar da ambientação pseudomedieval, o autor deu um jeito de incluir referências ao cinema (em "A Magia de Holy Wood") e ao feminismo (em "Direitos Iguais, Rituais Iguais"), entre outras modernidades.

Essa descrição rápida do Disco e de seus habitantes talvez deixe a impressão de que os livros valem apenas como uma sucessão descompromissada de gargalhadas, turbinada pelo tradicional humor absurdo dos britânicos. Tais aspectos, no entanto, são apenas parte do charme da obra.

Se há algo da fantasia clássica tolkieniana nos livros de Pratchett, é o talento para a chamada subcriação -ou seja, a invenção de uma realidade secundária cheia de detalhes coerentes e memoráveis, que adquirem uma consistência própria, próxima do mito. E a sátira do Mundo do Disco, embora sempre muito engraçada, só é inócua na superfície, em especial quando os temas da narrativa incluem a natureza do poder e da morte (aliás, "o" Morte: no Discworld, trata-se de uma entidade do sexo masculino, que só fala em letras maiúsculas).

LETRAS SUMIDAS

Em 2007, quando descobriu que tinha uma forma atípica do mal de Alzheimer, o autor continuava a produzir cerca de dois livros por ano, que invariavelmente iam parar na lista britânica dos mais vendidos.

A doença que acabou matando Pratchett pode ser descrita com a ajuda de uma série de palavrões técnicos quase tão obscuros quanto os que constam dos tomos da biblioteca da Universidade Invisível.

Entre os sintomas da PCA (sigla inglesa de "atrofia cortical posterior", ou seja, que afeta a parte traseira do córtex cerebral) estão a apraxia, dificuldade de planejar corretamente os movimentos; a alexia, ou seja, problemas para ler direito; e a agnosia visual, que dificulta o reconhecimento de objetos. Nos últimos anos, essa constelação de fatores fez com que Pratchett passasse a "escrever" ditando as frases para Rob Wilkins, seu secretário, ou então quebrando o galho com softwares de reconhecimento de voz.

Pratchett logo se tornou uma das vozes mais importantes em favor de mais pesquisas a respeito do mal de Alzheimer, em especial depois de descobrir que os estudos sobre a doença recebem apenas uma pequena proporção do financiamento dedicado a novos tratamentos contra o câncer. A BBC produziu um documentário em duas partes sobre como o escritor convivia com a enfermidade -o filme acabou sendo premiado no Bafta, o equivalente britânico do Oscar.

Diante da perspectiva de sintomas mais sérios da doença -conforme progride, a PCA pode ter efeitos cognitivos severos, a exemplo das formas mais comuns do Alzheimer-, Pratchett defendeu que todo doente deveria ter o direito de escolher o suicídio assistido caso desejasse. No fim das contas, ele não precisou lançar mão dessa saída.

Os milhares de páginas do Discworld inevitavelmente continuarão a ser o principal legado de sir Terry -Pratchett foi sagrado cavaleiro de Sua Majestade em 2009. Mas é provável que o livro que melhor exemplifica seu amálgama único de mordacidade e ternura seja "Belas Maldições", de 1990, que ele escreveu em parceria com Neil Gaiman.

A discussão teológica no comecinho do romance é lapidar (os grifos são do próprio livro):
"Deus não joga dados com o Universo. Ele joga um jogo inefável de sua própria invenção, que poderia ser comparado, da perspectiva de todos os outros jogadores (i.e. todo mundo), a estar envolvido numa versão abstrusa e complexa de pôquer numa sala escura feito breu, sem poder olhar as cartas, apostando o infinito, com um crupiê que se recusa a te contar as regras e que sorri o tempo todo".

Santo Agostinho não teria feito melhor.

REINALDO JOSÉ LOPES, 36, é jornalista, autor de "Além de Darwin" (Globo) e assina o blog "Darwin e Deus" no site da Folha.


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