Folha de S. Paulo


PT precisa mudar rápido, afirma cientista político André Singer

RESUMO Em respostas por escrito a questões da "Ilustríssima", o cientista político André Singer diz que o PT corre risco de desmoralização e que Dilma Rousseff paga o preço de uma campanha equivocada. Ele considera que surgiu uma nova direita capaz de ir às ruas, mas vê o perfil das manifestações do dia 15 como de centro.

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Folha - Muitos imaginavam que a presidente Dilma, uma vez reeleita, implementaria uma agenda de governo que aprofundasse opções políticas mais à esquerda. Não foi o que aconteceu. Ela optou por um ministério conservador e aderiu ao programa de ajustes defendido pela oposição. O que aconteceu?
André Singer - Dilma Rousseff fez uma escolha de campanha equivocada. Hoje sabemos que o governo já tinha uma avaliação de que precisaria compor com o setor financeiro. Sendo assim, não deveria ter adotado o tom que adotou durante a competição eleitoral.
Ainda na chamada pré-campanha, decidiu por destacar o seu passado heroico, com o slogan "coração valente". Depois, a partir da ascensão de Marina Silva, no final de agosto, empunhou um ponto de vista de esquerda e de ataque aos bancos, o qual lhe permitiu em pouco tempo desidratar a candidata do PSB. Por fim, quando o segundo turno ficou apertado, escolheu mostrar o caráter de classe da candidatura Aécio Neves. Vale lembrar, a título de ilustração, que ele foi chamado de "filhinho de papai", para mostrar de que lado estavam os pobres e de que lado estavam os ricos no pleito. A ideia (correta) de que o PSDB faria uma política econômica antipopular foi reiterada à exaustão.
Tais opções acabaram por gerar uma falsa expectativa. Quando se olha a política econômica desde meados de 2013, percebe-se que ela já havia entrado em compasso defensivo. Os juros foram aumentados, o controle cambial, arrefecido. Persistiam as desonerações, mas esse era o lado menos avançado do ensaio desenvolvimentista tentado de maneira corajosa por Dilma, diga-se de passagem, entre 2011 e 2012. Na imprensa, circulavam informações, não desmentidas, de que as pressões por um ajuste recessivo haviam chegado ao coração do poder. A demissão de Guido Mantega em plena corrida eleitoral, aliás, foi um alerta do que viria pela frente.
No entanto, o marketing tem seus efeitos. A maioria das pessoas não acompanha nem tem grande interesse por economia. Prevaleceu o entendimento de que havia compromisso profundo de Dilma com uma plataforma popular contra a opção preferida pelos banqueiros. Aí, não se passam nem sequer 24 horas da proclamação da vitória, e a presidente reeleita começa a buscar alguém do mercado financeiro para gerir a Fazenda. O eleitorado não costuma perdoar tal tipo de virada.

Manuela Eichner

Como você avalia as perspectivas no curto e médio prazos? Qual a chance de a presidente recuperar autoridade política e atravessar o deserto? Acredita na hipótese de impeachment ou renúncia?
O quadro de curto e médio prazo é muito difícil e não há saída simples. A situação econômica já era ruim, pois houve estagnação em 2014. A presidente prometeu retomar o crescimento e, ao contrário, optou por um ajuste recessivo, o que aumentará o fosso em 2015, pelo menos. Uma coisa seria enfrentar um pouco de inflação, decorrente do aumento da energia, com a perspectiva de mais emprego e renda. Outra coisa é sentir o fantasma do desemprego e queda do salário real rondando por aí. Nessas condições, o mau humor com o governo cresce muito.
Além disso, há uma segunda crise em curso, a qual potencializa a primeira. O escândalo da Petrobras tem, ao que parece, dimensão inédita. Os esquemas de financiamento de campanha são velhos e universais, não constituindo triste privilégio nem deste momento nem do Brasil. Isso não justifica nem alivia nada, mas precisa ser registrado. Porém a bola da vez é a Petrobras e o caso rende notícias cada vez mais fortes há um ano. Como este episódio se dá quase em cima das prisões do mensalão, que já foram algo espetacular, cria-se a impressão de que o Brasil está sendo literalmente saqueado.
A soma das duas crises -econômica e de corrupção- gera uma situação terrível para o governo, até porque uma alimenta a outra.
A Petrobras, e toda a cadeia produtiva em torno dela, ocupa um espaço importante no PIB. À medida que é afetada, ajuda a afundar mais a atividade econômica, o que enfraquece a presidente do ponto de vista político. Por outro lado, quando o governo está fraco, os agentes econômicos relutam em investir, com medo de instabilidade. Por fim, embora a presidente não tenha responsabilidade no esquema que existia na Petrobras, o escândalo cai no colo do Executivo. Cria-se, então, um círculo vicioso em que a fraqueza política gera mais dificuldade econômica e vice-versa.
Como a presidente não tem responsabilidade no caso da Petrobras, não há qualquer base para impeachment e não acredito em renúncia. Então, teremos um período de impasse, turbulento e longo pela frente. É preciso ver com cuidado como os atores vão atuar nele. Chegou a hora da grande política, em que os partidos precisam ser partidos, os estadistas, ser estadistas, e a sociedade vai testar o próprio grau de maturidade.

Como você avalia o papel do PMDB hoje, que parece com apetite para lançar candidato e assumir diretamente o poder? O partido poderia ocupar o lugar do PSDB em oposição ao PT ou se tornar uma espécie de terceira via conservadora?
Por vias estranhas, mas bem brasileiras, o PMDB vem ocupando o lugar de partido de centro. Em geral, o partido centrista costuma ter grande apelo eleitoral, pois a maioria dos votantes, em condições normais, converge para o centro. Mas no Brasil, o PMDB tem sido um centro, desde 1989, eleitoralmente fraco, tanto é que desistiu de lançar candidatos à Presidência, e não creio que venha a fazê-lo, a menos que a situação mude muito em razão da crise.
Como o PMDB tem espaço parlamentar, funciona como fiel da balança entre o PT e o PSDB no presidencialismo de coalizão. Nos últimos 20 anos, o partido se acomodou bem nessa posição. Embora tenha uma composição heterogênea, com políticos que vão da esquerda à direita, na prática funciona como moderador tanto das propostas do PT quanto do PSDB, o que é típico do centro.
À medida que a crise tende a equilibrar os dois principais partidos, pois o PT caiu um pouco e o PSDB subiu um pouco, a força relativa do PMDB -como fiel da balança- cresceu. Não por acaso, o vice-presidente é do PMDB e tende a ter um protagonismo maior durante a crise.
Apesar disso, não me parece que o PMDB tenha um projeto próprio nem que venha a ser o principal partido do campo conservador, no qual o PSDB está muito bem estabelecido. Não se deve esquecer que o PMDB está muito envolvido nas denúncias da Lava a Jato, o que dificulta o desenvolvimento de uma alternativa autônoma.
O melhor que pode acontecer é o PMDB ter um papel positivo na busca de uma saída para a crise. Não adianta sonhar com partidos ideais. É preciso que funcionem os que existem.

Há uma nova direita? Com que perfil? Você diria que o PT de certa forma reinventou a direita no Brasil?
Existe, sim, uma nova direita, mas que, em alguns aspectos, é bem velha. Em outros, não.
Vamos por partes.
Em primeiro lugar, apareceram no cenário jovens de direita, o que há muito não existia. Desde os anos 1960, a juventude no Brasil inclinava-se à esquerda. Agora há uma divisão. Os sinais da novidade já estão no ar há uns dez anos, mas de repente virou uma massa capaz de ir para a rua, embora, na minha opinião, a maioria dos manifestantes do 15 de março devam ser de centro, e não de direita.
Não foi o PT que reinventou a direita. Em parte, ela surgiu como reação às políticas do lulismo, que a direita detesta com todas as suas forças. Isso não é novo, já aconteceu no antigetulismo. A classe média tradicional mostrou que tem horror à ascensão social dos pobres. É um fenômeno sociológico e político. Chega a ser uma rejeição ao próprio povo brasileiro.
Mas há também a lenta, porém contínua, penetração de valores neoliberais, o que, por sua vez, é um fenômeno internacional. Há uma hegemonia neoliberal no mundo que já dura mais de 30 anos. Isso explica o aparecimento de grupos de liberais extremados no Brasil, o que antes era visto como exótico. Tanto uma coisa quanto a outra -antilulismo e liberalismo radical- tendem a se concentrar em São Paulo, onde o capitalismo entra mais fundo, a globalização está mais presente e a classe média é maior.

O PT nasceu também como promessa de mudança na cultura política. Com o tempo repetiu os mesmo vícios dos demais partidos e envolveu-se naquilo que o Lula costumava chamar de "maracutaias". Como o PT pode recuperar sua autoridade moral?
De fato, o PT surgiu como um partido diferente dos outros e durante muitos anos foi coerente com essa diferença. Foi isso que lhe deu o impulso vital para crescer e chegar onde está. Ocorre que, a certa altura, o partido decidiu assumir uma série de compromissos que não estavam no programa original. A partir de 2002 surge o que eu chamo de "segunda alma", que orienta o PT desde então.
Ao mesmo tempo, o partido conseguiu governar o Brasil por 12 anos, o que não é pouca coisa, mas foi perdendo energia moral. Agora chegou à grande encruzilhada. O escândalo da Petrobras, sobreposto e potencializando o do mensalão, representa um desafio maior para o partido, que corre o risco de completa desmoralização.
Sempre convém lembrar que o governo passa, e o partido fica, e que o PT é uma instituição importante não só para os petistas mas para a democracia brasileira. A direita e parcelas da mídia estão aproveitando a situação para demonizar o PT, o que é um desserviço democrático. Todo aquele que cometeu crimes deve ser responsabilizado por eles, mas a direita democrática deveria entender que é fundamental existir no país um partido popular competitivo e capaz de governar. Uma coisa são as pessoas, outra, a instituição.
Do seu próprio ponto de vista, para recuperar a autoridade moral, o partido precisaria tomar medidas duras de autorrevisão. Por exemplo, afastar de imediato todos os investigados, até que terminem os inquéritos. Teria que se colocar à frente do processo, em lugar de permanecer em uma postura defensiva que o está sangrando dia a dia, com reflexos de longo prazo. É necessário mudar rápido.

Como você avalia as manifestações do último fim de semana?
Foram manifestações grandes, particularmente em São Paulo, com um tom que me pareceu de protesto, porém, de certa maneira, moderado. Há grupos extremistas que pedem golpe militar, mas são pequenos. Mesmo o impeachment não parece ser o núcleo das manifestações, e sim a corrupção.
Uma coisa que chama a atenção é o fato de que não existe propriamente uma reivindicação.
O 15 de março foi mais um modo de extravasar o descontentamento, sem uma palavra de ordem clara. Nesse sentido, é um movimento que ainda não tem uma direção definida, como se fosse uma energia que flutua sem saber direito para onde ir. Se eu estiver certo, ela pode adotar diversas direções, a depender de quem a empolgue.
O governo deveria utilizar essa indefinição para repactuar logo, com as diversas forças em cena, inclusive as que saíram às ruas no dia 13 de março, um modo de gerir a crise, cujo agravamento não interessa a ninguém, a não ser a quem aposte no quanto pior melhor.


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