Folha de S. Paulo


Em "Rãs", de Mo Yan, aborteira chinesa personifica o poder do Estado

Quando o escritor chinês Mo Yan recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 2012 e foi calorosamente elogiado pelo governo comunista, se tornou um dos mais criticados ganhadores na história da grande honraria. Entre as acusações mais benignas que lhe foram feitas estava a de que não merecia o prêmio. Herta Müller, também ganhadora do prêmio, definiu a escolha como "catastrófica"; Salman Rushdie definiu Mo como "títere" do regime por não expressar apoio a Liu Xiaobo, ganhador do Nobel da Paz que o governo chinês mantém encarcerado; e ele foi definido como apologista do regime chinês, por não criticar o governo. Ao fazer seu discurso de aceitação, Mo disse que a sensação era a de assistir a uma peça sobre a vida de outra pessoa.

O que ficou fácil de ignorar em meio a todo esse barulho é a escrita de Mo. Seu mais recente romance, "Rãs", traduzido de maneira graciosa e coloquial para o inglês por Howard Goldblatt, não é trabalho de um pau mandado ou ideólogo. É uma história épica, rica e perturbadora –e também muito humana– sobre a política do governo chinês que só autoriza um filho por casal, e os leitores ocidentais que imaginam compreender como o sistema funciona terão de mudar de ideia. "Rãs" é um livro surpreendentemente dramático por conta dos confrontos entre os pais prospectivos e as autoridades de planejamento familiar (ou melhor, os aborteiros do governo), que realmente acreditam que aquilo que estão fazendo é o melhor e não agem apenas porque são essas as suas ordens.

Jonas Ekstromer - 10.dez.2012/Efe
O escritor Mo Yan com sua mulher Quinlan Du, após receber o Prêmio Nobel em dezembro de 2012
O escritor Mo Yan com sua mulher Quinlan Du, após receber o Prêmio Nobel em dezembro de 2012

Em retrospecto, e para quem contempla a situação de longe, pode parecer que a China impôs essa política com pulso de ferro e sem resistência. Mas não foi bem assim. Os dois principais personagens de "Rãs" –que se passa no nordeste da China, em uma região que serve como equivalente de Mo para o condado de Yoknapawpha, de Faulkner– são o narrador, que usa o pseudônimo "Girino", e sua tia Gugu, que ele vê como intrépida heroína. Gugu nasceu em 1937 e foi a primeira parteira moderna a trabalhar na cidade natal do Girino.

Na verdade, ela foi a primeira pessoa a tratar partos com técnicas mais modernas que as de uma feiticeira sem qualquer treinamento. As descrições Gugu sobre os métodos das antigas curandeiras são apavorantes –"elas usavam unhas compridas, seus olhos tinham um brilho esverdeado e fosfórico, e seu hálito fedia", escreve Mo. "Ela contou que as curandeiras pressionavam a barriga da mulher com um rolo de macarrão, e a amordaçavam com trapos, para impedir que o bebê saísse pela boca".

Esses métodos primitivos estavam em uso antes que Gugu, como adolescente, executasse seu primeiro parto, combinando a compaixão de um médico à autoridade de um general. Ela poderia ter feito carreira brilhante como médica e funcionária do partido caso não tivesse se apaixonado em 1960 por um piloto da força aérea que desertou e voou para Taiwan, onde aderiu a Chiang Kai-shek. Se o piloto não tivesse se referido a Gugu em seu diário como "idiota vermelha", por conta da lealdade dela ao partido, e das ideias burguesas que ele abrigava clandestinamente, quem sabe qual poderia ter sido o preço dessa traição?

Mo Yan, cujo nome real é Guan Moye, diz tudo que precisa sobre a Revolução Cultural por meio de uma cena na qual o Girino e outros meninos de escola comem carvão e dizem que o sabor é delicioso. A força de "Rãs" está no humor sombrio, e não na exploração narrativa da miséria. Assim, claro, a fome do período é terrível, mas é aliviada por uma safra recorde de batatas doces, e com isso os jovens famintos voltam a se tornar férteis. E isso traz gestações, o que poderia voltar a causar fome caso as autoridades permitissem o nascimento de todas aquelas crianças.

As regras de planejamento familiar estabelecidas pelo governo não são inflexíveis. Mais de um bebê é autorizado caso a família tenha uma menina na primeira tentativa, mas é preciso um intervalo de oito anos entre filhos. Tente transmitir essa ordem a casais jovens, apaixonados e que recuperaram a saúde... Na verdade, Gugu tenta: educar os casais se torna a sua missão, e o livro descreve os esforços dela para trabalhar pelo bem comum. Mas em caso após caso ela se vê impedida por situações que não demoram a descambar para uma espécie de loucura. Em um caso, Gugu se posta diante de uma casa onde vive uma grávida, e ameaça derrubar uma preciosa árvore da vida e depois demolir as casas dos vizinhos, e responsabilizar o pai da gestante pelo prejuízo, caso ela não saia.

O que ela se tornou? Ao longo do livro, o Girino repete essa pergunta, a ele mesmo e a um personagem não identificado e que ocupa posição de autoridade. (Os capítulos do livro tomam a forma de longas cartas do Girino a esse homem. Por fim, ele escreve uma peça decepcionantemente sem graça sobre a vida de Gugu, e a envia igualmente ao seu correspondente.) Devemos vê-la como uma boa mulher que se tornou má? Como salvadora ou como destruidora de vidas, como amiga das mulheres ou como perigo para elas? Outra parte inesquecível do livro mostra forças lideradas por Gugu tentando capturar uma mulher grávida antes que ela tenha o bebê. Para Gugu, um feto ainda no útero é alvo válido. Mas se a criança nascer, se torna cidadã chinesa e Gugu perde o direito de tirar sua vida.

Para tornar a situação ainda mais surreal (as imagens e o clima de intensidade criados por Mo levaram a comparações justificadas com Gabriel García Márquez), há as rãs do título. O termo não é apenas uma referência ao girino e seu apelido. A presença viscosa das rãs significa todos os estágios da fecundidade, do esperma ao bebê; elas servem até para representar o mercado negro de filhos gerados por mães de aluguel, para os casais que não são capazes de conceber. As rãs são objetos de horror e desejo, e dão ao livro uma qualidade estranha, de pesadelo, que serve para solapar a estrutura ordeira, imposta pelo governo, que deveria prevalecer.

Há mais mágica na criação de bonecos que parecem bebês e são tratados como filhos por mulheres ávidas por determinar exatamente que tipo de criança produzirão. Um dado artista desfruta do inexplicável poder de criar o boneco certo para cada pessoa, e "Rãs" se mostra tão confortável diante desse talento inexplicável e místico quando diante das normas reais do Estado chinês para a reprodução. Que parte dessa história é mais estranha? Se Mo Yan fosse apenas aquilo que seus detratores apontam, esse livro perturbador e inventivo ofereceria uma resposta.

"Rãs" sai no Brasil pela Companhia das Letras em setembro.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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