Folha de S. Paulo


Marchand que apostou nos impressionistas é homenageado

Paul Durand-Ruel se propôs a criar valor para algo que ninguém queria e acabou por mudar para sempre a economia do gosto. Com olhar aguçado e nervos de aço, foi o primeiro marchand a criar um negócio com arte contemporânea, e durante anos foi o único a vender e, com frequência, o único a comprar obras dos impressionistas.

Ele contraiu empréstimos para pagar os aluguéis de seus pintores, as contas médicas e de alfaiate deles, casando a arte e as finanças para idealizar um novo paradigma para a compra e venda de cultura: promoveu a individualidade como artigo vendável. Monarquista católico que ia à missa todas as manhãs, Durand-Ruel coordenou as carreiras do republicano ateu Claude Monet, do anarquista judeu Camille Pissarro, do antissemita rabugento Edgar Degas e do misógino reacionário Pierre-Auguste Renoir: um microcosmo de fissuras intelectuais subjacente à Paris do século 19.

Divulgação
Quadro 'Fragmento de Nenúfares', de Claude Monet
Quadro 'Fragmento de Nenúfares', de Claude Monet

Quando, em 2012, Larry Gagosian expôs as pinturas de pontos de Damien Hirst simultaneamente em suas 11 galerias pelo mundo afora, ou quando William Acquavella pagou uma dívida de jogo de £2,7 milhões para Lucian Freud, esses marchands de primeira linha de hoje estavam reiterando estratégias idealizadas por seu antecessor parisiense. Pioneiro da exposição solo, da representação de galerias, do hype proposital de nomes específicos, da criação de marcas globais e do acesso aberto a exposições, Durand-Ruel definiu -para melhor e para pior-o modo como consumimos e entendemos a arte hoje.

"Inventing Impressionism" (Inventando o Impressionismo), uma mostra fascinante e penetrante que irá do Musée du Luxembourg à National Gallery de Londres em março, conta a história de Durand-Ruel através das obras-
primas que fizeram sua fortuna. A exposição contém algumas das obras mais amadas pelo público jamais pintadas, além de material revelador de arquivo.

O Musée d'Orsay vai ceder as telas em tamanho natural "A Dança Campestre" e "A Dança na Cidade", de Renoir, odes ao hedonismo e ao prazer democrático, que enfeitavam o salão de Durand-Ruel, além de "Cavalo Diante das Tribunas", o experimento fugaz de Degas com o movimento, feito com tinta de petróleo, que Durand-Ruel comprou por mil francos e vendeu por 30 mil. Virá de Filadélfia o vertiginoso "A Batalha do Kearsage e do Alabama", de Manet, que transformou o gênero da pintura marítima. Os "Álamos", de Monet, foram reunidos a partir de três continentes, ampliados por efeitos de cor e luz ao ponto de se tornarem abstratos -pinturas que foram as primeiras obras em série a serem expostas como uma instalação única. Elas garantiram o sucesso de Monet -"não sobrou um álamo sequer para vender", ele comentou quando a exposição chegou ao fim, em 1891-e criaram uma sensibilidade cultural.

As inovações estéticas vistas nestes quadros em muitos casos espelham as transformações sociais das quais faziam parte as empreitadas de risco de Durand-Ruel, contestando o monopólio do Salão parisiense do valor artístico.

O marchand comprou 23 telas de Manet, que até então não tinha vendido praticamente nada, no dia em que se conheceram, em 1872, e ao longo das três décadas seguintes as vendeu pouco a pouco a colecionadores que emergiam da nova classe média endinheirada. Trajando ternos pretos, esses "flâneurs" são vistos movimentando-se entre as faixas chatas artificiais de árvores e arabescos dourados de cadeiras metálicas industrialmente produzidas em "Música no Jardin des Tuileries", de Manet. Durand-Ruel encorajava e explorava precisamente a economia urbana moderna que Manet retratava. Ele vendeu essa tela seminal ao marchand irlandês Hugh Lane em 1906.

Sua coreografia do impressionismo começou, antes mesmo de o movimento ganhar um nome, em Londres, entre um grupo de refugiados da guerra franco-prussiana. Durand-Ruel, que queria ser missionário mas, em vez disso, herdou a papelaria e gráfica de seu pai, foi apresentado pelo pintor Charles-François Daubigny, de Barbizon, a Monet, então com 30 anos, com as palavras: "Este artista vai superar nós todos".

Em 1871, Monet era uma aposta de alto risco, um pintor pobre e nada vendável. A National Gallery tem a tela icônica "The Thames below Westminster", com a paisagem envolta pelo nevoeiro matinal, que Monet pintou naquele ano, sob a influência dos trabalhos de Turner que viu em Londres; ela só foi vendida em 1877. Ao longo dessa década, depois do retorno de Monet a Argenteuil e da tragédia na vida do próprio Durand-Ruel -ele perdeu sua mulher, nunca se casou novamente e criou seus cinco filhos sozinho–, o marchand em vários momentos chegou perto de falir. O apoio ao impressionismo virou sua "religião" nova e solitária.

O brilho de luz sobre o Sena em "Barcos Recreativos" e a folhagem castanho-avermelhada brilhando contra a água em "Efeito Outonal, Argenteuil" (ambos de 1872-73) representam o apogeu do impressionismo, quando Monet fragmentou a pincelada para capturar vibrações e reflexos luminosos. As telas "passaram despercebidas por quase todas as pessoas que visitaram nossas galerias", recordou Durand-Ruel, mas ele nunca hesitou; à sugestão de Monet de cortar os preços pela metade, respondeu: "Eu não teria vendido mais e não teria podido fixar as telas da mesma maneira na mente dos colecionadores".

O milagre daqueles anos não é apenas a maestria com que Monet e Renoir conquistaram a representação da luz e o modo como Durand-Ruel compreendeu essa revolução -é também a transmissão de alegria para as telas criadas em tempos de grande dificuldade.

"Mulher Lendo", que Durand Ruel comprou em 1872, representa em pinceladas de cores puras o sol que é filtrado por lilases, com Camille, a mulher de Monet, "vestida de branco e sentada à sombra das folhagens, com seu vestido pontilhado de lantejoulas brilhantes, como gotas d'água", na descrição feita por Zola. "Lavacourt sob a neve" (1878-81), pintado quando Camille estava morrendo, refina o retrato de água como neve dura e iridescente. Durand-Ruel enviou esta tela em turnê por São Petersburgo, Helsinque, Berlim e Londres como emblema impressionista. Foi o primeiro Monet a entrar para um acervo público britânico -em 1915.

Durand-Ruel não falava inglês, mas fazia o dinheiro falar. Incentivado por americanos que visitavam sua galeria na Rue Lafitte, em 1886 atravessou o Atlântico com 43 engradados de pinturas, e em questão de semanas em Nova York vendeu "pinturas que levaram 20 anos para ser apreciadas em Paris".

"Não pensem que os americanos são selvagens", ele disse a seus artistas hesitantes. "Pelo contrário: são menos ignorantes e bitolados que nossos colecionadores franceses." Durand-Ruel visitou os Rockefeller, vendeu telas aos Havemeyer, inaugurou uma galeria na Quinta Avenida em 1887 e ponderou que "sem a América eu teria ficado arruinado, perdido. Graças ao público americano, Monet e Renoir puderam sobreviver."

Os colecionadores do Novo Mundo eram mais ousados, mas também estavam vendo mais obras: em 1886, Durand-Ruel já podia apresentar conjuntos inteiros de trabalhos, mostrando o desenvolvimento individual de cada um de seus artistas. "Ele tem obras de Renoir de tal qualidade e em tanta quantidade que nem se pode imaginar!" escreveu Alfred Pope, magnata do ferro de Cleveland.

Exibidos em seu apartamento de Paris como exposição permanente, aberta a visitantes, muitos desses trabalhos foram vendidos à América por preços até então sequer sonhados pelos filhos de Durand-Ruel pouco após a morte do marchand, em 1922. "The Luncheon of the Boating Party" foi para a Coleção Phillips por US$125 mil. "Duas Irmãs", uma cena ambientada no mesmo terraço e com as figuras suavemente fundidas com a paisagem ribeirinha, tinha sido comprada de Renoir por Durand-Ruel por 1.500 francos em 1881 e foi vendida a um colecionador de Chicago por US$100 mil em 1925.

Monet viveu tempo suficiente para observar essas transações. "Sem Durand teríamos morrido de fome, todos nós, impressionistas. Devemos tudo a ele", ele disse.

Desde então, todo movimento artístico jovem dependeu de um marchand visionário para atuar como intermediário público. A maioria, como o soturno e grisalho Durand-Ruel, cujos compradores americanos adoravam seus "modos fascinantes", foram radicais disfarçados de burgueses, pessoas que, com sua aparência conservadora, levavam os clientes a acreditar que os ultrajes artísticos mais recentes de seus artistas seriam vendáveis.

"O que teria sido de nós se [Daniel-Henry] Kahnweiler não tivesse tido tino para os negócios?" indagou Picasso, falando do erudito galerista alemão que salvou os cubistas da fome. Houve Herwarth Walden, que vendeu expressionistas alemães a partir de seu apartamento esplêndido em Berlim; o charmoso europeu Leo Castelli, que converteu a pop art americana em fenômeno internacional; o britânico Jay Jopling, que vendeu os artistas da geração Young British Artists. Todos repetiram a estratégia de alto risco e altos retornos da especulação com nomes desconhecidos. Todos converteram o escárnio em triunfo quando seus artistas viraram o novo establishment.

Visionários ou pragmáticos? "Amo a galeria, a arena da representação", diz Jeff Koons. "É um mundo comercial, a moralidade geralmente se baseia na economia, e isso está acontecendo na galeria de arte."

Hoje um marchand que tenha toque de Midas precisa refinar o modelo de Durand-Ruel dentro de uma economia da experiência, própria do século 21, em que a criação de arte, a performance de arte e o marketing de arte estão convergindo. David Zwirner, por exemplo, financiou o projeto de Oscar Murillo para levar trabalhadores colombianos para uma fábrica de chocolate construída no ano passado em sua galeria em Nova York; colecionadores que queriam comprar pinturas de Murillo saíram frustrados.

Mas, como Durand-Ruel provou, nunca houve regras, exceto, talvez, a de Castelli, segundo a qual a arte "é o que os artistas fazem com ela. Não precisamos gostar dela, mas não podemos descartá-la. Podemos lamentar determinada moda, mas não podemos simplesmente dizer 'isso não é arte, isso vai desaparecer'."

Tradução de Clara Allain.


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