Folha de S. Paulo


Uma militante relata a tortura sob Pinochet

RESUMO No livro "A Memória de Todos Nós", a sair pela Record em abril, Eric Nepomuceno aborda as ditaduras de Argentina, Chile, Uruguai e Brasil, e comissões criadas posteriormente para investigação de crimes. Recolhe relatos de presos e torturados, como este, da criadora do Museu da Memória e dos Direitos Humanos do Chile.

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Marcia Scantlebury desceu aos infernos e conseguiu voltar ao mundo dos vivos. Lembra cada minuto de agonia e de miséria: abomina o esquecimento, se nega a esquecer.

Para ela, a memória é matéria de vida, e a vida é matéria de memória. Sabe que mudar o passado é impossível, da mesma forma que tentar ocultá‑lo ou negá-lo é inútil. Também por isso foi encarregada, pela então presidente socialista Michelle Bachelet [2006-2010, reeleita em 2013], que conheceu os rigores da prisão durante a ditadura encabeçada pelo general Augusto Pinochet, de criar o projeto e depois implantar o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em Santiago do Chile. [...]

Tudo no Museu da Memória resgata, revela e refaz o que os responsáveis e os cúmplices do terrorismo de Estado ao longo desses 17 anos tentaram ocultar.
Há registros indicando que pelo menos 3.200 chilenos desapareceram durante a ditadura (entre eles 39 menores de idade), e que os presos políticos foram pelo menos 28.459 (1.244 deles eram menores).
No Museu da Memória conta‑se essa história. [...]

Marcia Scantlebury sabia que a possibilidade de cair presa era muito alta. Sabia o que esperaria por ela se isso acontecesse. Mas o que aconteceu superou até mesmo seus pesadelos mais atrozes.
Uma de suas lembranças mais fundas guarda a dimensão do que aconteceu.

Conta Marcia que, ao ser presa, foi revistada e despida por uma mulher, uma carcereira. E que foi bem tratada, e sentiu‑se um pouco reconfortada naquele cenário de horror. E que depois, nas sessões de tortura, era precisamente essa mulher a que com mais sanha se lançava contra ela.

Certo dia, essa mulher tirou‑a da cela e pediu que a ajudasse a tricotar uma peça. Marcia então pôde tirar a venda dos olhos e percebeu que a mulher estava grávida. E ajudou‑a a tricotar uma peça para o filho que sua algoz esperava.

As duas nunca mais se encontraram. Marcia até hoje não sabe se teceu uma roupinha para um menino ou uma menina.

Ela esteve presa no mesmo campo de tormentos que Michelle Bachelet, a Villa Grimaldi. Bachelet soube que estava lá porque uma de suas companheiras de cárcere era a dona da fábrica de lajotas e ladrilhos que cobriam o chão do pátio. Aquele chão, que era a única coisa que os presos e presas conseguiam ver quando passavam com os olhos vendados a caminho do desconhecido -a vida, a tortura ou a morte. Por ali passaram uns 4.500 presos políticos entre 1973 e 1977. Cerca de 230 deles integram as listas dos desaparecidos para sempre. Marcia Scantlebury foi uma das sobreviventes, e, porque sobreviveu, lembra:

*

"Jamais esquecerei aquele tempestuoso entardecer do dia 3 de junho de 1975. Nem do gemido da enorme porta de ferro deslizando pelo chão daquela terra maldita. Um par de horas antes eu estava ajudando meus filhos a fazer suas tarefas escolares, quando uma patrulha da polícia política irrompeu violentamente em minha casa e me forçou a entrar num veículo.

Um de meus captores cobriu meus olhos com esparadrapo e um par de óculos escuros. Então a caminhonete de vidros espelhados desandou numa enlouquecida corrida que concluiu diante de um recinto que, deduzi, pelo declive do terreno e pelo frio que doía nos ossos, estava aos pés da cordilheira.

As mãos ásperas do condutor me empurraram com violência para fora. Depois, atravessei tateando o umbral de um portão e fiquei parada, tiritando de medo diante de uma paisagem invisível, tratando de decifrar os misteriosos sons que o silêncio contém.

O vento gelado penetrava sem piedade o couro das minhas botas, e comecei a escutar, como num concerto macabro, uns gemidos intermitentes, prantos sufocados e um aterrorizante e prolongado grito.

'Deve ser algum bicho', quis pensar. Olhei para o chão por uma brecha da venda que cobria meus olhos e avistei ladrilhos como os italianos. E nesse instante entendi que havia chegado à antessala do inferno. Eu estava em Villa Grimaldi, o centro secreto de torturas mais famoso do Chile.

Uma carcereira de aspecto descuidado me pegou pela mão e me guiou com inusitada delicadeza até um recinto ao lado. Mas, chegando lá, sem mais preâmbulos, começou a me despir com rapidez, enquanto outra mulher, com voz de entediada rotina, começava o inventário de meus pertences: 'Três notas de dinheiro, uma corrente com uma cruz de prata, um lenço de cabelo, meio maço de cigarros, um isqueiro, uma agenda de telefones...'.

Quando saí de Villa Grimaldi, depois de 23 dias infinitos, eu era outra pessoa. Após os sádicos interrogatórios e longas sessões de tortura, que incluíam a aplicação de eletricidade em todo o corpo, eu me sentia suja, vazia, humilhada.

Até aquele instante o ódio havia sido, para mim, apenas um conceito intelectual. E, no entanto, agora eles tinham me feito conhecer a perversa amplidão desse sentimento viscoso que ficou encolhido debaixo da minha pele.

Nos sórdidos corredores de Villa Grimaldi aprendi a distinguir as sombras das vítimas, as vozes dos guardas, o estranho latir dos cães e as freadas dos veículos que descarregavam no pátio sua sinistra carga de seres humanos maltratados.

Depois fui levada para Cuatro Álamos, outro recinto secreto para presos isolados, que estava sob a responsabilidade de um tenente psicopata que abusava sexualmente das presas e nos submetia a absurdas sessões de hipnose e a detectores de mentira.

Éramos três ou quatro em cada cela, e jamais nos deixaram tomar um banho de chuveiro. Nos levavam ao banheiro uma vez por dia, deixando a porta aberta e tirando nossas vendas dos olhos para nos humilhar diante do olhar mórbido dos guardas.

Antes que nos trancassem para dormir, costumávamos cantar, grudadas na porta que dava para o corredor, e esparramávamos nomes, histórias, sonhos e desejos.

Embora o aqui e o agora fossem incertos, nós nos empenhávamos em inventar um futuro e, com obstinado otimismo, nos preparávamos para ser livres.

A questão era não nos desmoralizarmos, não nos darmos por vencidas. Mas às vezes a desesperança destroçava nossas almas, e escorríamos, desenfreadas, para um desânimo obscuro. E nos atormentava a lembrança dos que nunca chegaram à outra margem. E memorizávamos os nomes, as datas e preces dos que, nas paredes do recinto de presos isolados de Cuatro Álamos, haviam deixado seus desolados depoimentos.

Os dos homens eram mais informativos e precisos: 'Sou de Temuco. Permaneci nesta cela entre 13 de abril e 2 de junho de 1974'. Depois, davam os nomes, as idades, as profissões. Os depoimentos das mulheres, por sua vez, deixavam lacônico registro de suas existências, ou de suas tristezas: 'Vivi dezesseis dias de horror, avisem a minha mãe. Cecília'. 'Aqui estou, meu Deus. Você existe? Blanca.'

Sabíamos que Cuatro Álamos era apenas uma parte perversa do caminho. Ninguém ficava muito tempo ali. Será que o preso de abril tinha voltado para Temuco? Onde teria acabado o pesadelo de Cecília? Será que Deus teria se lembrado de Blanca?

Nos dias mais negros, quando de cela em cela se espalhavam rumores sangrentos, era difícil deter as atropeladas batidas do coração. E então eu ia até a pequena janela do meu quarto e permanecia longos minutos em silêncio, perseguindo a rota do arame farpado sobre a muralha e imaginando as cores das paisagens livres.

Este é o depoimento de uma presa política sobrevivente num país sitiado pelo terror e enfermo de medo. Este é o meu depoimento. Apenas um entre os de milhares de homens e mulheres militantes da resistência e vítimas da repressão no tempo triste da tirania.

Passaram‑se 36 anos desde aqueles dias de chumbo, e no Chile muita água passou por baixo da ponte. No entanto, ainda somos muitos os que lutamos para preservar a memória e não nos render diante da indiferença e do esquecimento".

Nota: Os [...] indicam pontos em que a introdução do autor ao depoimento foi abreviada para esta edição

ERIC NEPOMUCENO, 66, é escritor e tradutor. Ele é autor de "O Massacre" (Planeta) e tradutor de diversos livros de García Márquez.


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