Folha de S. Paulo


A mórbida história da obsessão pelos zumbis

RESUMO Sucessor de "Frankenstein" e "Drácula" no imaginário macabro, o mito dos zumbis, originário do Haiti, ganhou fôlego no cinema e nos quadrinhos. A série "The Walking Dead", exibida no Brasil às segundas-feiras, às 22h30, pelo canal Fox, é o mais recente e desenvolvido produto da proliferação cultural dos mortos-vivos.

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A série de TV paga "The Walking Dead" é o produto mais recente -e mais desenvolvido, ao entrar há três semanas na segunda parte do quinto ano- de uma epidemia cultural: a obsessão por zumbis. Tem sido vertiginosa, nas últimas décadas, a proliferação de filmes, séries televisivas, histórias em quadrinhos, paródias e videogames em torno desse tema bizarro.

Quando certa mitologia irrompe e se dissemina assim, não demoram a aparecer interpretações que a associam ao espírito da época. As histórias de zumbi devem expressar, em termos de entretenimento ou arte pop, alguma angústia essencial, inconsciente e coletiva que atravessa fronteiras. À sombra das produções comerciais, surgiu uma ensaística, sobretudo nos departamentos norte-americanos de estudos culturais, voltada a essa dissecação.

Terrorismo, minorias, fanatismo religioso, a exaustão ambiental, a massa de excluídos ou a própria sociedade de consumo -as mais diversas figuras de medo social e crítica política já foram projetadas sobre a superfície amorfa, passiva e plástica das hordas perambulantes de zumbis. É como se este fosse um mito-ônibus em que coubessem todos os significados. Sugestivo, aliás, que sua ameaça imaginária ocorra numa era de superpopulação global e de frequência inédita nos contatos com a alteridade étnica, por causa da popularização das viagens internacionais, das migrações e da internet.

Frank Ockenfels 3/AMC
Cena de episódio da quinta temporada da série
Cena de episódio da quinta temporada da série "The Walking Dead", adaptação de HQ lançada em 2003

Como o medo do "outro", o temor aos mortos é generalizado entre as culturas. Parece plausível considerá-lo resquício evolutivo que premia comportamentos de aversão à matéria orgânica decomposta, propícios a reduzir os riscos de contágio e intoxicação. Como esse temor costuma ser esconjurado por rituais para aplacar a suposta ira dos mortos, a tradição psicanalítica passou a compreendê-lo como manifestação de culpa pelos desejos inconscientes de matar nossos semelhantes, a começar por um dos progenitores.

No terreno da mitologia macabra, os dois antecessores das histórias de zumbi têm raiz literária. "Frankenstein" (1818), da inglesa Mary Shelley, considerada a primeira obra de ficção científica, explora uma vertente do romantismo, a novela gótica, com suas atmosferas tumulares e motivos fantásticos. Na aurora da Revolução Industrial, o livro induz à ideia de que o homem, violando seus limites quando usurpa o papel divino para manipular a natureza por meio da tecnologia, chamava a si uma sinistra punição. Desde então, a ficção científica reteve esse caráter romântico, reacionário até, na medida em que hostil ao progresso material.

"Drácula" (1897), do irlandês Bram Stoker, é uma história tardia do mesmo gênero, mas seu protagonista, diferente da criatura feita com pedaços de cadáver cerzido que uma descarga elétrica devolve à vida, é um aristocrático vampiro romeno a que não faltam artes de sedução hipnótica e voraz -o que reflete as irrupções de uma sexualidade tão reprimida quanto mal velada, própria do período vitoriano, a época de Freud. Embora o americano H.P. Lovecraft, celebrado autor de histórias fantásticas, tenha deixado uma novela sobre mortos-vivos ("Herbert West - Reanimator", 1922), o gênero surgiu mais tarde, no cinema e nos quadrinhos.

AFRO-AMERICANO

Também em contraste com "Drácula" e "Frankenstein", que se nutriam do folclore europeu, o mito dos zumbis é afro-americano, originário do Haiti. Em 1929, o jornalista William Seabrook publicou um livro de viagens pseudo-etnográfico sobre aquela metade ocidental da ilha caribenha, "The Magic Island". Relata ali que legiões de mortos, ressuscitados por sortilégio, trabalhavam nas plantações de feiticeiros haitianos. O próprio autor ventila uma explicação racional, ao supor que tais latifundiários conhecessem alguma substância capaz de induzir pessoas vivas a um estado catatônico que possibilitava escravizá-las.

Essa crença percorria camadas de ressentimento. A ressurreição dos mortos era vinculada na ilha às sucessivas revogações da abolição depois da Revolução Haitiana de 1791, a única revolta de escravos vitoriosa na história. Movidos pelo interesse de explorar e assegurar abastecimento de açúcar e café produzidos no Haiti, os Estados Unidos mantiveram o país sob ocupação militar entre 1915 e 1934, sustentando um governo fantoche na capital, o que terá dado ensejo às habituais reações de medo e culpa nas camadas mais sensíveis da sociedade invasora. O livro de Seabrook inoculou, assim, a mania de zumbis na cultura popular americana.

Em 1932, estreou nos cinemas "White Zombie", baseado na história. Bela Lugosi, ator de origem húngara que havia encarnado o conde Drácula num filme famoso no ano anterior, faz o papel do feiticeiro. Roteiro e diálogo soam hoje ingênuos, e os efeitos, como se pode imaginar, tosquíssimos; Lugosi é um canastrão experimentado que causou calafrios nas plateias da época ao perfurá-las com seu olhar captado num insistente primeiro plano.

A partir daí o mito entra em latência, encerrado na subliteratura e nos quadrinhos onde continua, por assim dizer, morto-vivo.

Os anos 50 acarretaram uma vaga de medo histérico que respondia a duas ameaças igualmente insidiosas, invisíveis e fulminantes: a radiatividade e o comunismo (figurado muitas vezes na forma de "marcianos", invasores do planeta vermelho). Esse clima reanimou as histórias de zumbi, que se tornaram mais "científicas". No livro "Eu Sou a Lenda"(1954), Richard Matheson imagina certa mutação, causada por acidente radiativo, que converte parte da humanidade numa nova espécie biológica, Homo vampiris. No filme "Zombies of Mora Tau" (1957), pela primeira vez o contágio é abordado numa perspectiva epidemiológica.

'KANE' DOS ZUMBIS

Mas foi somente no simbólico ano de 1968 que apareceu "Night of the Living Dead", ("A Noite dos Mortos-Vivos"), considerado o "Cidadão Kane" dos filmes de zumbi. Nessa obra e nas cinco que se seguiram, o diretor George Romero (tendo por corroteirista, no início, John Russo) criou o mito do zumbi moderno, fixando em imagens seu léxico e sua gramática.

A cena se passa na mais familiar paisagem de subúrbio americano, à maneira das histórias de terror de Stephen King. A mordida dos zumbis propaga o contágio, e eles se revelam canibais também. Seus corpos se apresentam em estágios patéticos de deterioração; seu avanço rumo às vítimas é lento e trôpego (o que permite esticar as cordas do suspense), mas inexorável, pois tendem a se agrupar numa multidão arfante, sôfrega, invencível. Não têm consciência nem enxergam, parece, mas ouvem bem demais.

Romero não se ocupa das causas de seu apocalipse, adotando com displicência a convenção do efeito mutante. Os especialistas gostam de citar a frase de uma personagem de seu filme "Dawn of the Dead" ("O Depertar dos Mortos", 1978) que, quando alguém indaga sobre quem são os zumbis, responde apenas: "Somos nós". O interesse da trama está mais focalizado nos sobreviventes do que nos seus perseguidores -ou antes no que a perseguição faz aflorar naqueles. Pois a procissão de mortos não deixa de ser um espelho escancarado diante dos vivos, que também zanzam em desespero, jogados da noite para o dia num mundo hobbesiano sem lei nem ordem onde a vida é "solitária, pobre, má, brutal e curta".

Apesar da força imaginativa, os filmes de Romero nunca deixaram de ser rudimentares produções B; há algo de Ed Wood no seu sangue de tomate, nas locações improvisadas, na maquiagem amadorística. Outros autores e cineastas seguiram seu exemplo, procurando refinar seu estilo, tornando mais dinâmicos os roteiros e melhor a sua consecução. O ápice dessa evolução é "Guerra Mundial Z" (2013), baseado no romance de Max Brooks e dirigido por Marc Forster -na opinião deste resenhista, o mais satisfatório dentre os filmes do gênero.

FRENÉTICOS

Acostumados à lentidão exasperante dos zumbis, ficamos estarrecidos quando, na frenética sequência inicial, o primeiro deles se atira com fúria sobre um carro, quebra o para-brisa a cabeçadas e investe num átimo contra seus ocupantes. O cinema contemporâneo impõe seu ritmo aos cadáveres desengonçados. Pelo meio do filme, é memorável a cena em que milhares de zumbis se amontoam como formigas fervilhantes até transbordar para dentro de um imenso muro, erigido em torno de Jerusalém no vão esforço de isolar a cidade sagrada.

Em entrevista recente, o diretor brasileiro Fernando Meirelles identificou o cinema com o conto e a série de TV com o romance. "The Walking Dead", que estreou em 2010, foi concebida para o canal AMC por Frank Darabont a partir das histórias em quadrinhos de Robert Kirkman e Tony Moore, publicadas desde 2003. A série tem a excelência técnica de "Guerra Mundial Z". Com mórbido detalhismo, sua cosmética mimetiza a putrefação em toda a terrível variedade de suas cores e formas. Na primeira vez em que alguém espatifa o crânio de um zumbi (única maneira, nas convenções do gênero, de matá-lo em definitivo), o efeito é tão repugnante que a tentação é desligar; na trigésima, você se pega bocejando.

Dada a imensidão de horas disponíveis, porém, a série não se reduz aos horripilantes confrontos entre vivos e mortos, que acontecem quase sempre à luz do dia. Intercaladas com eles, quando as personagens -um bando de sobreviventes que se mantém mais ou menos unido- conseguem pernoitar a salvo num abrigo seguro como uma penitenciária ou igreja abandonada, surgem passagens intimistas nas quais vivem os dramas hobbesianos que opõem o interesse de cada um e a lealdade para com o grupo, em guerra com outros grupos. Os roteiristas têm tempo e fantasia para compor um sombrio tecido psicológico de dilemas, traições, alianças, condutas sublimes e abjetas. Ao longo dos episódios, cada protagonista adquire uma vida intensa e pessoal.

Afinal de contas, trata-se da celebração da vida. Despojada de toda crença transcendental -na pátria, na ideologia, na vida eterna, nos valores tradicionais-, certa de que nada mais existe além do hedonismo calculista do aqui-e-agora, a mentalidade da nossa época está livre para assassinar os defuntos e tripudiar sobre a morte.

OTAVIO FRIAS FILHO, 57, é diretor de Redação da Folha, autor de "Queda Livre" (Companhia das Letras, 2003) e "Cinco Peças e Uma Farsa" (Cosac Naify, 2013).


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