Folha de S. Paulo


Museu em Paris destaca influência francesa na obra de Pablo Picasso

Pablo Picasso, o maior artista do século 20, era francês.

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Estou plenamente ciente de que Picasso nasceu em Málaga, no sul da Espanha, em 1881, que começou sua carreira em Barcelona, e que manteve orgulhosamente sua condição de espanhol por toda a vida.

Mas a reabertura do Musée Picasso em Paris, no final do ano passado, confirmou o direito singular da capital francesa a se definir como lar desse pintor, escultor e poeta estupendamente criativo. O gênio do artista está completamente emaranhado nas ruas e mansardas, palácios e sótãos de Paris, cidade que visitou pela primeira vez em 1900 e cuja vida artística ele conduziria a novas alturas.

Picasso jamais esqueceu a Espanha, mas precisou de Paris para se tornar um grande artista. Em 1900, a capital francesa já estava repleta de modernistas. O jovem Picasso emulou as cenas de vida noturna de Toulouse-Lautrec e não demorou a se deixar fascinar pela arte de Degas, Van Gogh e, acima de tudo, Cézanne. O período "rosa' de Picasso ecoa os trabalhos tardios de Degas, e Cézanne é o deus do cubismo. Picasso por fim enriqueceu o bastante para comprar um chateau aos pés do Mont Saint-Victoire, e se vangloriava de ser o proprietário de uma das paisagens pintadas por seu herói Cézanne. O artista espanhol está sepultado lá.

Esses grandes artistas franceses inspiraram os estilos em constante mutação de Picasso, e a cidade mesma - com sua boêmia e vida desregrada - alimentou sua imaginação. Em "Les Demoiselles d'Avignon", obra-prima angulosa e ameaçadora que ele pintou em 1907, Picasso tomou as mulheres que habitavam o Montmartre de Toulouse-Latrec e as reimaginou como descaradas terroristas do sexo.

Os primeiros dias de Picasso em Paris, vivendo no cambaio [edifício] Bateau-Lavoir, foram tumultuosos. Eventos como o banquete que ele deu em seu estúdio para Henri Rousseau, um artista genial que nunca havia treinado formalmente como pintor, se tornaram lendários.

Mas a Picasso de Paris também inclui a Rive Gauche e os cafés da região, nos quais, nos anos 30, ele descobriu o movimento surrealista. Quando viajei para cobrir a reabertura do Musée Picasso, no ano passado, encontrei o loft em que o pintor viveu nos anos 30, bem perto dos famosos cafés da Rive Gauche nos quais ele conversava sobre arte com intelectuais radicais. Foi no sótão em que ele vivia no edifício, construído no século 17, que ele pintou "Guernica".

Interpretamos a maior obra de arte da era moderna, corretamente, como uma defesa da Espanha contra Franco e Hitler - o quadro de guerra de Picasso retrata a destruição da cidade basca de Guernica por bombas nazistas. Mas o quadro é muito francês. Foi criado naquele loft parisiense e saiu de lá direto para a Exposição Universal de Paris em 1937, onde foi exibido no pavilhão espanhol. Os restos do local da exposição - onde pavilhões nazistas e fascistas se defrontavam sombriamente - ainda existem, à beira do Sena.

"Guernica" não só foi pintado em Paris mas tem raízes profundas na história da arte, que Picasso mesmo lecionava no Louvre. A grande tradição francesa de pintura histórica, de Poussin a Géricault, um dos destaques do acervo do Louvre, flutua por trás do grande quadro histórico moderno pintado por Picasso.

"Guernica" e a Guerra Civil Espanhola foram, claro, o motivo para que Picasso passasse o resto da vida na França. A vitória de Franco e a destruição da democracia espanhola significaram que o artista, um homem de princípios, jamais tenha podido retornar ao seu país natal. Ele estipulou que o quadro "Guernica" só poderia ser restituído à Espanha depois da morte de Franco.

Picasso passou a Segunda Guerra Mundial em Paris, trabalhando discretamente e ajudando a Resistência. Seu desafio à ocupação nazista fez dele uma figura ainda mais indissociável da história da cidade.
Está bem. Picasso talvez não tenha sido francês. Mas foi com toda certeza parisiense.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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