Folha de S. Paulo


Arquivo Aberto - Cartas de meu avô

Curitiba, 1962

Sempre gostei muito deste poema do Manuel Bandeira (1886-1968), "Cartas de Meu Avô": "A tarde cai, por demais/ Erma, úmida e silente.../ A chuva, em gotas glaciais,/ Chora monotonamente.// E enquanto anoitece, vou/ Lendo, sossegado e só,/ As cartas que meu avô/ Escrevia a minha avó".

Pois não é que meu avô, Paul Garfunkel (1900-81), que chegou ao porto de Santos em 1927 a bordo do navio Massilia, com sua mulher Hélène, trazendo na bagagem um bebê de seis meses (meu pai), deixou-nos um legado inestimável de "cartas de amor ao Brasil"?

Explico: em 1926 esse engenheiro francês, formado pela Sorbonne, casa-se com sua colega de classe –que, segundo dizem, era melhor aluna que ele– e recebe uma proposta da Fichet, fábrica de cofres francesa, para trabalhar no Brasil.

Seu espírito "flâneur" e aventureiro jamais deixaria de agarrar essa oportunidade ("très exotique"). Na década de 30, devido a turbulências políticas e a certas amizades suspeitas, como Monteiro Lobato, com quem haveria de inventar uma fábrica de óleo de banana movida pelo motor da geladeira da minha avó, Garfunkel é solenemente dispensado da Fichet e passa a se dedicar a vários empreendimentos progressistas que fatalmente haveriam de falir.

Paul Garfunkel
"Adieu au Massilia", litografia de Paul Garfunkel para o álbum artesanal "Imagens do Brasil"

Com certeza herdamos dele nosso infalível tino comercial. Segundo meu irmão, que tem o mesmo nome do avô, nosso lema familiar é: "Perder se preciso for, ganhar nunca". Mas, para compensar essa inaptidão congênita para os negócios, a natureza lhe deu talento para pintura e uma rara visão poética.

A respeito de seu trabalho, disse certa vez: "Não entendo por que se criam tantos tabus em relação à arte. Ela é em essência tão simples! Está nas ruas, na gente que passa; é apenas uma questão de sensibilidade, de transmissão de sentimentos, de diálogo de amor".

Viajante, cuidadoso observador, registrava com precisão impressionista tudo o que seu olho azul emocionado distinguia. Seus cadernos de croquis eram uma espécie de diário de viagem.

No começo dos anos 50, instalado em Curitiba, desiste dos negócios (para alívio geral) e dedica todo seu tempo à pintura. Por sugestão do embaixador da França no Brasil na época, Bernard Hardion, produziu e editou artesanalmente 275 exemplares do álbum "Imagens do Brasil": 20 litografias assinadas e retocadas à mão, acompanhadas de comentários.

Em 1962, o velho Garfunkel lança "Novas Imagens do Brasil", com mais 20 gravuras (desta vez serigrafias) igualmente assinadas, retocadas à mão e comentadas pelo autor, com tiragem de 250 exemplares. No primeiro álbum, imagens de Santos, São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná. No segundo, as cores, os cheiros e os sabores do norte e do nordeste do país.

Em 1983, o crítico Pietro Maria Bardi organizou uma exposição de Paul Garfunkel no Masp. Ousou chamá-lo de Debret do século 20 e, num artigo para revista "Senhor", escreveu sobre os álbuns: "Um conjunto de trabalhos a ser definido patrimônio, sem precedentes de anotações, em que se notam, além da bravura excepcional do traço, a compreensão e o amor que conseguiu representar".

Hoje leio as "cartas de meu avô" publicadas na bela edição impressa de "Imagens do Brasil" [Id Cultural, 120 págs., R$ 60] que outro neto seu, meu primo Luca Rischbieter, heroicamente conseguiu editar, em colaboração com o designer gráfico Maurício Vieira.

É estranho sentir saudade e orgulho ao mesmo tempo. No cine da memória dos anos 60, me vejo com 8 anos, sentado irrequieto no seu ateliê em Curitiba, posando para um retrato a óleo, nunca terminado.

Aquela bagunça, aquele cheiro de tinta, aqueles esboços de nu feminino que me interessavam profundamente, embora eu me esforçasse para não demonstrar, e o mau humor tipicamente francês de meu avô, que preferia viajar pelas paisagens brasileiras a tentar captar em vão a expressão desatenta do netinho mimado.

No meu DNA, nenhuma aptidão para a pintura. Talvez a mesma paixão ancestral pelas palavras e, sem dúvida, esse irredutível amor pelo Brasil, que ainda tento traduzir do meu jeito em poemas e canções.

"O Massilia não existe mais, nossas ilusões estão mortas. Mas o Brasil nos agarrou e nos segurou; estranho e belo país, irritante e envolvente como uma amante por demais amada.''

JEAN GARFUNKEL, 61, poeta, cantor e compositor, acaba de lançar o álbum "13 Pares e Um Fado Solitário".


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