Folha de S. Paulo


Antropólogos, índios e outros selvagens

RESUMO Livro do antropólogo Napoleon Chagnon que aborda suas pesquisas entre os ianomâmis é lançado no Brasil. Em entrevista, autor, que direcionou sua carreira para uma interpretação evolutiva do comportamento indígena, fala sobre suas conclusões e comenta a recepção, muitas vezes negativa, de sua obra entre seus pares.

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Sobre Napoleon Chagnon, 76, há só uma unanimidade: trata-se do pesquisador mais polêmico da antropologia contemporânea.

Nesta entrevista, o americano –que lança agora no Brasil o livro "Nobres Selvagens: Minha Vida entre Duas Tribos Perigosas: os Ianomâmis e os Antropólogos" pelo selo Três Estrelas, do Grupo Folha– afirma que a antropologia brasileira representa o que há de mais atrasado no pensamento anticientífico nessa área.

Chagnon critica ainda alguns brasileiros ligados à temática indígena, como o líder ianomâmi Davi Kopenawa, "manipulado por antropólogos e ONGs", e o cineasta José Padilha, autor do documentário "Segredos da Tribo", que "deveria se limitar a filmar Robocop".

Ana Prata

Chagnon estudou os ianomâmis do Brasil e, principalmente, da Venezuela a partir de 1964 e ao longo de 35 anos, em 25 viagens que totalizaram 5 anos entre os índios. Foi o pioneiro no contato com várias tribos isoladas, que acredita serem uma janela para as sociedades pré-históricas nas quais o gênero Homo viveu por milhões de anos.

Foi visto com antipatia por diversos colegas antropólogos por propor explicações darwinianas para o comportamento dos índios –e dos humanos em geral– e ao escrever, em 1968, um livro em que tratava amplamente da violência entre os índios e no qual, desde o título, "Yanomamö: The Fierce People" (sem tradução no Brasil), chamava os ianomâmis de "o povo feroz". Despertou inimizades ao se afastar dos colegas antropólogos, que acreditava mais interessados em fazer política do que ciência, e se aproximar de geneticistas.

Foi em 1988, porém, que causou a fúria dos colegas, ao publicar na revista "Science" um estudo mostrando que os homens ianomâmis com assassinatos no currículo eram justamente os que tinham mais mulheres e descendentes. Em termos biológicos, a violência masculina e certo egoísmo humano seriam estratégias reprodutivas bem-sucedidas, ideia que desagradou fortemente seus colegas das humanidades.

O antropólogo sempre defendeu que os índios que estudou guerreavam movidos por uma insaciável vontade de capturar mulheres, enquanto os livros tradicionais de antropologia diziam que a guerra primitiva tinha motivos como a escassez de alimentos ou de terra.

Chagnon diz que seus críticos são marxistas movidos pela ideologia de que os conflitos humanos se explicam pela luta de classes ou por disputas materiais, e não por motivos mais animalescos, como a busca por sucesso sexual.

Ele afirma que nenhum colega pôde apontar falhas nos dados publicados na "Science". No entanto, antropólogos questionam seu procedimento não só nesse caso como em outros trabalhos (leia ao lado).

Em 2000, o jornalista Patrick Tierney publicou o livro "Trevas no Eldorado" (lançado no Brasil em 2002, pela Ediouro), acusando Chagnon e colegas, entre outras coisas, de terem espalhado sarampo deliberadamente entre os índios. As acusações foram investigadas pela Associação Americana de Antropologia, que inocentou os pesquisadores da grave acusação.

Na entrevista abaixo, feita por telefone, Chagnon trata ainda de temas como a higiene dos índios e os riscos da selva.

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Folha - O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro criticou na internet a publicação do seu livro no Brasil, dizendo que o sr. está ligado à "direita boçalmente cientificista".

Napoleon Chagnon - A ideia de que o comportamento humano tem uma natureza biológica, moldada pela evolução, além da cultura, sofreu muita oposição nas últimas décadas de quem tem uma visão marxista. Está havendo uma mudança de paradigma, mas os antropólogos brasileiros são o último reduto dessa oposição e sempre tentaram impedir meu trabalho.

Marxistas não gostam de explicações que não envolvam a luta por recursos materiais. Para eles, isso explica tudo. Eles diziam, por exemplo, que a causa da guerra entre os ianomâmis era a escassez de proteína –uma tribo atacaria a outra em busca de carne. Nossas observações mostraram, porém, que não havia correlação. Eles tinham abundância de proteína; lutavam, na verdade, por mulheres.

Nos EUA, cientistas importantes, como meu grande amigo Steven Pinker e o professor Jared Diamond, escreveram recentemente livros demonstrando a relevância crescente da psicologia evolutiva.

Os antropólogos latino-americanos me atacam, mas não têm dados para rebater as conclusões que proponho, porque não gostam de trabalho de campo. Eles gostam de argumentos teóricos, de ficar sentados nas suas cadeiras na universidade fazendo ativismo. No entanto, para entender o mundo, você tem de coletar informações a fim de testar suas previsões e teorias. Essa é a base do método científico. A tendência pós-modernista é dizer que não há verdade, que tudo é social ou político. Isso é a morte da ciência.

Esses críticos dizem que sua visão dos ianomâmis é muito negativa. Citam trechos do seu livro em que o sr. descreve criticamente os hábitos de higiene dos índios, dizendo que eles espalhavam muco em tudo.

Tenho muitas críticas à minha própria civilização também, como o excesso de filas. Os ianomâmis não têm uma teoria da transmissão de doenças via germes. Então assoam o nariz na mão e passam no cabelo, nos outros, até na minha bermuda [risos]. A primeira coisa que quis aprender na língua deles foi "não encoste em mim, suas mãos estão sujas", mas não adiantou. Você se acostuma.

Na verdade, você percebe que há coisas mais sérias com que se preocupar. A vida na tribo é perigosa. Há muitas cobras. Um bebê de uma tribo ianomâmi em que vivi sumiu, e os pais concluíram que a única explicação era que tivesse sido comido por uma anaconda. Há ainda muitos insetos, há onças, muitos outros incômodos.

Como é a sua relação com o líder ianomâmi Davi Kopenawa?

Ele é manipulado pelos seus mentores, seus conselheiros políticos, a maioria antropólogos e ONGs, que dizem a ele o que ele deve declarar. Ouço que muitos jornalistas brasileiros têm essa percepção, mas sabem que é impopular dizer isso em público.

As entrevistas com ele costumam ser mediadas por antropólogos.

Pois é. Veja, em uma das minhas visitas aos ianomâmis no Brasil, Kopenawa proibiu o piloto do meu avião de utilizar o combustível que tinha guardado perto de uma das tribos em que ele tinha influência. Ele queria a todo custo que eu ficasse isolado na floresta, fez isso deliberadamente. O piloto teve de conseguir combustível com outros colegas. Essa é uma das razões que me levaram a não ter uma opinião muito positiva a respeito dele.

Kopenawa critica vocês por não devolverem amostras de sangue que coletaram entre os índios em 1967 para estudos científicos na área de genética e que foram parar em bancos de universidades dos EUA.

Sou simpático a esse pedido. Mas essas amostras são 99% de tribos venezuelanas, não brasileiras. Seria horrível se entregássemos tal sangue para os ianomâmis brasileiros, como Kopenawa. Uma tribo ficaria muito assustada de saber que seus vizinhos têm o sangue de seus ancestrais, eles acreditam que isso poderia ser utilizado para fazer magia negra, por exemplo.

É importante dizer que, influenciadas por antropólogos, lideranças ianomâmis tornaram impossível hoje, para qualquer pesquisador, ir a suas tribos e coletar amostras de sangue; foram convencidos de que isso foi um crime terrível que cometemos. Dessa forma, nenhum pesquisador da área biomédica pode agora fazer estudos que envolvam coleta de amostras. Os ianomâmis vetaram para sempre qualquer pesquisa que possa beneficiar a sua saúde e dependa de exames de sangue.

Eu gosto muito dos ianomâmis. Fiquei muitos anos com eles. Eles merecem ser mais bem representados. É nítido que eles precisam de instituições que permitam acesso à medicina moderna, por exemplo. Eles precisam de ajuda.

De qualquer forma, eu não coletei amostras de sangue. Eu só ajudei os médicos a fazê-lo. Eu sou antropólogo. Não estou nem aí para o que acontecerá com as amostras de sangue congeladas nos EUA. Mas seria irresponsável se fossem entregues aos índios errados.

O sr. assistiu ao documentário "Os Segredos da Tribo" (2010), do brasileiro José Padilha?

Padilha mentiu para mim, foi muito desonesto. Ele disse que faria um filme equilibrado, mas nunca mencionou que as acusações feitas contra mim foram completamente desmentidas [pela Associação Americana de Antropologia]. Ele contratou um missionário que falava a língua ianomâmi para fazer as entrevistas com os índios. Esse missionário, amigo meu, depois veio me avisar que Padilha direcionava as entrevistas contra mim, que tudo era feito para criar a impressão de que os ianomâmis me odiavam. O filme é ridículo.

Além disso, Padilha lançou o filme e desapareceu, nunca respondeu às minhas ligações. Na apresentação do filme no festival de Sundance, ele não só não me convidou como chamou três antropólogos inimigos meus para debater. Um deles, Terence Turner, que teve participação ativa na elaboração do filme, me acusava de ser o Mengele das tribos ianomâmis. É doentio. Padilha deveria se limitar a filmar "Robocop".

Depois de trabalhar muitos anos nas universidades do Michigan e de Missouri, o sr. agora é professor aposentado. Aposentou-se também da pesquisa científica?

Não. Continuo trabalhando com os dados que coletei nas tribos ao longo desses anos todos. Estou para publicar vários artigos em revistas importantes, como a "Science", mostrando o impacto de conceitos caros à biologia, como o parentesco, na organização das tribos ianomâmis. Se os antropólogos brasileiros não gostam do meu trabalho, ainda não viram nada [risos]. No caso do público brasileiro, espero que os leitores encontrem no meu livro agora publicado uma melhor compreensão da natureza humana, seja no comportamento dos povos indígenas ou no de um vizinho.

RICARDO MIOTO é editor de "Ciência" e "Saúde" da Folha.

ANA PRATA é artista plástica.


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