Folha de S. Paulo


Críticos deveriam assistir a filmes mais de uma vez?

Tramas complexas ficam mais claras quando vemos um filme pela segunda vez, mas alguns filmes são intencionalmente confusos. E, se o crítico volta ao cinema para rever sua opinião, será que é justo com seus leitores, que só têm uma chance?

Um boato em circulação diz que, para apreciar "Vício Inerente", de Paul Thomas Anderson, deveria ser obrigatório assistir ao filme uma segunda vez. O diretor Edgar Wright resumiu a ideia num tuite ("chamo o filme de 'Inherent Twice' ('inerente duas vezes', em vez de 'vício inerente'), porque quero vê-lo de novo"). E a "Vanity Fair" perguntou: "Alguns filmes têm o direito de exigir ser vistos duas vezes?"

Há um consenso crescente em torno da ideia de que uma vez só não basta. É uma reação lógica. Em comum com "The Big Sleep" ("À Beira do Abismo") ou "Chinatown", a trama de "Vício Inerente" é escorregadia como uma banheira cheia de cobras. É desnecessário dizer que, se esses filmes forem vistos mais de uma vez, o nível de compreensão do espectador vai subir. O que isso deixa de levar em conta é o efeito desejado depois de um primeiro contato com "Vício Inerente". Há algo a ser dito em favor de conservar esse efeito. Geralmente não voltamos a assistir a um filme de terror para ver como ele fica sem o fator do susto. Um mistério policial nunca é o mesmo quando o mistério já foi desfeito. À sua própria maneira, "Vício Inerente" será um filme diferente quando visto pela segunda vez. É o caso da maioria dos filmes.

A ideia de que não podemos entender o filme depois de vê-lo só uma vez é problemática para o público e para os críticos, de maneiras distintas. Uma espectadora que tem uma reação alérgica ao filme de Anderson não pode ser criticada por rir da hipótese de se dispor a gastar mais 12 libras e duas horas e meia de sua vida para assistir de novo a algo que a deixou entediada ou confusa da primeira vez. Como Eddie Murphy disse certa vez em um contexto diferente, uma comida que você precisa aprender a apreciar talvez nunca tenha sido feita para ser comida.

Os críticos enfrentam um problema de logística, além de democracia cultural. Os críticos de cinema de jornais nacionais precisam assistir a até 12 filmes por semana. Se vamos oferecer o benefício da dúvida ao filme de Anderson, a mesma cortesia deveria ser dada a outros filmes também. Outros dez títulos chegaram aos cinemas na mesma semana que "Vício Inerente". A animação da Disney "Operação Big Hero 6" ou o documentário "No Manifesto", sobre a banda Manic Street Preachers, também serão beneficiados pela dupla visão?

Digo isso como crítico que não pode alegar que teve apenas um "Vício". Vi o filme pela primeira vez numa pré-estreia pública, sabendo que, gostasse dele ou não, eu teria que voltar com meu bloquinho de anotações antes de redigir uma resenha. A mesma coisa aconteceu com três outros títulos que vi para fins recreativos no festival de cinema de Londres e então revi recentemente, agora como crítico. Minha reação inicial foi fortalecida em cada um dos casos. O fascínio de "Vício Inerente" se manteve; o filme de horror "It Follows" ainda me pareceu visionário; "Whiplash" foi igualmente fascinante, e "Foxcatcher" não melhorou nadinha. Se eu tivesse tido uma reação diferente, teria tido que publicá-la por escrito, do mesmo modo como alguns críticos diferenciam as resenhas que escrevem depois de ver um filme pela primeira vez, no calor de uma première em Cannes, e suas reações ao filme quando visto muitos meses mais tarde à luz fria de uma manhã no Soho.

Por trás do argumento do "Inherent Twice" se oculta o pavor do equívoco. Mudar de ideia faz parte da condição humana e só deve ser desencorajado em circunstâncias excepcionais -por exemplo, quando você está no altar e acaba de dizer "aceito". Mas alguém que admite ter se equivocado numa opinião que divulgou por escrito pode temer ser visto para sempre depois como um crítico fatalmente enfraquecido. O medo é que todas suas avaliações passadas e futuras sejam relativizadas no momento em que o crítico diz "oops".

A crítica de cinema que foi possivelmente a mais famosa de todas, Pauline Kale, da "New Yorker", resistia à ideia de assistir a um filme mais de uma vez. A única instância registrada em que isso aconteceu foi a noite em que ela cancelou um jantar para ir se certificar se "McCabe and Mrs. Miller" ("Jogos e Trapaças: Quando os Homens são Homens") era realmente tão bom quanto ela tinha anunciado. O jornalista George Malko, que a acompanhou naquela noite, escreveu: "Ela está vendo o filme de novo para que possa declarar o mais inequivocamente possível que tem certeza absoluta que o filme é quase uma obra-prima".

A.O. Scott, crítico de cinema do "New York Times", tem suas próprias razões para se negar a repetir a dose. "Como raramente tenho a oportunidade de ver um filme mais de uma vez antes de fazer sua resenha, procuro, concretamente, vê-lo duas vezes de uma só vez", ele falou em 2004. "Preciso vivenciar o filme do mesmo modo como todo o mundo vai, mas também, simultaneamente, refletir sobre essa experiência e analisar minhas reações ao mesmo tempo em que me permito tê-las. Isso é mais complexo do que parece; é uma habilidade técnica adquirida, como aprender a tocar piano com as duas mãos ao mesmo tempo."

Assistir a um filme duas vezes em seu papel profissional significa cogitar a hipótese de que você se equivocou da primeira vez. Isso gera margem a dúvidas. A possibilidade de um equívoco já estava presente na mente de Joe Morgenstern, da "Newsweek", depois de entregar sua resenha de "Bonnie e Clyde", em 1967. Ele o descreveu como um "esquálido filme de tiroteios para imbecis", mas então começou a se preocupar, achando que tinha se apressado em seu julgamento. Depois de assistir ao filme novamente no dia de sua estreia comercial, falou: "Comecei a suar frio e pensei 'merda, errei feio'". Morgensten jantou com Kael, defensora incondicional de "Bonnie e Clyde", que lhe disse: "Você pisou na bola, completamente". Naquele momento ele já tinha decidido se retratar, dizendo a seus leitores: "Lamento dizer que considero a resenha anterior totalmente injusta e lamentavelmente equivocada. Lamento ainda mais dizer que fui eu quem a escreveu."

Dilys Powell, crítica de cinema do "Sunday Times", também fez uma retratação pública de uma opinião controversa. Em 1960, descreveu "Peeping Tom" ("A Tortura do Medo"), de Michael Powell, como "imundície vulgar" e "essencialmente chulo". Em 1994, inverteu sua posição, escrevendo: "Hoje estou convencida que é uma obra-prima. Se algum diálogo for permitido em alguma possível vida após a morte, considerarei que é meu dever procurar Michael Powell e lhe pedir desculpas."

Nenhum crítico quer fazer como Dick Rowe, o executivo de artistas e repertório que rejeitou os Beatles, nem tampouco como a turma de bajuladores que confundiu as novas roupas do imperador com fios de costura de Savile Row. Uma coisa que não ajuda é que as opiniões dos críticos de cinema são singularmente vulneráveis ao desprezo e à atenção minuciosa do público, por duas razões. O cinema é a mais democrática das artes: a maioria das pessoas de todas as gerações tem uma opinião sobre filmes, mas apenas determinados setores da sociedade vão se envolver em discussões sobre um álbum de Miley Cyrus ou uma exposição de Braque.

Outra coisa é que os objetos de nossa crítica estão facilmente disponíveis para ser vistos, diferentemente do teatro ou do balé. A maioria dos leitores é obrigado a confiar no que diz um crítico quando fala que uma nova peça de Pirandello, por exemplo, foi mal encenada. Mas se eu lhe disser que o filme mais recente de Matthew Vaughn, "Kingsman: Serviço Secreto", é vil sob todos os aspectos, você poderá checar por conta própria e me contestar imediatamente.

Em 2006 o "Guardian" perguntou aos críticos sobre seu pareceres dos quais depois se arrependeram. Anthony Quinn, do "Independent", lamentou ter se derramado em elogios a "A Vida é Bela" ("que fique registrado, o filme é uma m... -e eu queria ter dito isso na época"), enquanto Peter Bradshaw, do "Guardian", admitiu ter sido indevidamente leniente com "Quarteto Fantástico" ("hoje admito que é um lixo"). Entrando no confessionário, eu mesmo, tenho que admitir que "Rob Roy - A Saga de Uma Paixão", "As Duas Faces de um Crime" e "O Quinto Elemento" foram casos de amor à segunda vista, depois que eu os tinha menosprezado injustamente no jornal. Eles não podem ser os únicos filmes que se beneficiariam se tivessem uma segunda chance. Será que meu discernimento se partiu quando falei mal de "Abraços Partidos?" E talvez a culpa tenha sido minha no caso de "A Culpa É das Estrelas".

A maioria dos críticos vai concordar com A.O. Scott, para quem geralmente apenas as nuances são mutáveis: "Acho que nunca mudei completamente de opinião sobre um filme, pelo menos não desde que comecei a escrever resenhas. Mas em alguns casos eu assisti a filmes pela segunda vez e achei que a ênfase de minha resenha não foi totalmente correta -ou eu fui intransigente demais com falhas pequenas ou tolerante demais de problemas mais sérios." Seria desonesto apegar-se totalmente a uma segunda impressão sem admitir que a primeira foi radicalmente diferente.

E tem que haver alguma coisa fascinante que atrai o crítico ou consumidor de volta, em primeiro lugar. O crítico Nicholas Barber o disse com elegância quando reviu o álbum "Post", de Bjork, 20 anos atrás: "É preciso ouvir este álbum uma dúzia de vezes para se acostumar com ele", escreveu, "mas apenas uma vez para entender que você quer ouvi-lo uma dúzia de vezes."

Tradução de CLARA ALLAIN


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