Folha de S. Paulo


Ponto Crítico - Exposição - O trabalho como arte

Hans Gunter Flieg nunca pediu para ser artista. É fotógrafo de profissão. Mesmo assim, talvez por isso, fez um dos trabalhos visuais mais consistentes do Brasil no século 20. A sua exposição, em cartaz na unidade Ibirapuera do Museu de Arte Contemporânea da USP, em São Paulo até 29/3, mostra a construção de um pensamento estético fino sobre a modernização acelerada da cidade no século passado.

Flieg nasceu na Alemanha em 1923. Com 16 anos, veio para o Brasil. Filho de uma culta família judia da Saxônia, trouxe na bagagem sua experiência com o modernismo alemão, a nova objetividade e o gosto pela fotografia. Aqui, ampliou seus conhecimentos técnicos e se entusiasmou com a produção dos fotógrafos da revista "Life".

Ele participou do processo de atualização da publicidade, da imprensa e da comunicação visual. Fotografou o Masp, a primeira Bienal de São Paulo e o MAM. Além disso, participou do rico debate artístico e arquitetônico das vanguardas paulistas.

Atendendo a diferentes clientes, suas fotos acompanhavam relatórios de fábrica, apareciam reproduzidas nos calendários, ilustravam textos e anúncios. As imagens eram feitas de acordo com as exigências do contratante.

Acervo Hans Gunter Flieg/Instituto Moreira Salles
Estande da Mercedes-Benz (projeto de Henri Maluf), na Exposição Internacional de Indústria e Comércio, no pavilhão de São Cristóvão, Rio de Janeiro, 1960
Estande da Mercedes-Benz (projeto de Henri Maluf), na Exposição Internacional de Indústria e Comércio, no pavilhão de São Cristóvão, Rio de Janeiro, 1960

Flieg, em um aspecto, trabalha de maneira similar a artistas contemporâneos. As suas imagens são encenadas. Tudo é controlado, o modo como a luz pousa sobre os objetos e o espaço, a pose dos personagens, a sujeira no chão, o estado das máquinas, as proporções. Eram cenas dirigidas, que levavam tempo para montar. O sentido das imagens não é a captura de um momento decisivo, é composição, no sentido estrito.

Em uma fotografia que ele fez na Indústria Elétrica Brown Boveri, em 1961, um homem aparece no fundo da imagem com uma prancheta, a inspecionar uma das duas máquinas diante dele. Perto das máquinas, o inspetor se apequena em seu guarda-pó. Isso se deve à composição, que amplia a escala das máquinas e diminui o inspetor. A máquina, em um espaço amplo e quase vazio, está isolada, desconectada do complexo fabril, sem função. Frontal, ela domina a composição.

Aparece, entretanto, como objeto de contemplação, que obriga o inspetor a se concentrar, como os personagens de uma tela de Chardin (1699-1779), e tomar notas.

Na mesma sessão, Flieg retrata um fuso elétrico centralizado no plano em 90 graus do chão. O fotógrafo nos mostra os refletores em torno da peça, iluminada como uma obra de arte, permitindo-nos ver todas as suas reentrâncias. O objeto é descrito como a escultura "Unidade Tripartida", de Max Bill. Está isolado, como uma relíquia futurista. Por isso, nas fotografias de Flieg, as esculturas de Jean Tinguely (1925-91) e os equipamentos da indústria Zauli são aparentadas. São feitos do trabalho humano que guardam diferenças, mas podem, nos dois casos, serem mostrados de modo contemplativo.

Uma ética do trabalho permeia a produção do fotógrafo. As diferentes atividades que ele retratou, apresentam homens dignos realizando seus afazeres com dedicação e sabedoria. Sejam eles operários, escultores ou sopradores de vidro, todos parecem fazer o melhor. As hierarquias existem, são visíveis em algumas fotografias, mas nenhum trabalho é qualitativamente superior.

A imagem do trabalho não é a impositiva linha de produção do filme "A Nós a Liberdade" (1931), de René Clair. Em uma foto da fábrica Cristais Prado, de 1947, os operários surgem em duas fileiras polindo vidros. Os trabalhadores se diferenciam uns dos outros. São gestos diferentes, expressões faciais diferentes, humores diferentes. A cena é feita para individualizar os personagens e mostrar a maestria deles na atividade.

Flieg pensava atividade como profissão. A empatia por esses personagens provavelmente passa por alguma identidade entre o fotógrafo e o que era fotografado. São cenas de um período histórico peculiar, otimista. De um futuro que se aproximava velozmente, com violência. Era uma época de muitas promessas. Flieg deu forma a algumas delas em imagens também otimistas, de homens a criar uma outra vida.

TIAGO MESQUITA, 36, é crítico de arte, autor de "O Olhar do Colecionador" (BEĨ Editora).


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