Folha de S. Paulo


Filósofo Michael Marder comenta ataques ao "Charlie Hebdo"

No dia 10 de janeiro de 2015, Slavoj Zizek convocou os leitores da "The New Statesman" "a criar coragem para pensar" depois dos ataques de terror em Paris. Foi um francês, René Descartes, quem inaugurou a modernidade filosófica com sua famosa afirmação cogito ergo sum, "penso, logo existo". Apesar de toda sua efusão de emoção pura, tristeza e desejo de defender a liberdade de expressão, o slogan tremendamente popular de hoje "je suis Charlie", "eu sou Charlie", nos impede de pensar.

Na primeira instância, essas palavras convidam à identificação em massa com os cartunistas e policiais mortos em 7 de janeiro na redação do jornal satírico "Charlie Hebdo". Mas a violência contra jornalistas não constitui novidade; muitos jornalistas já foram mortos no cumprimento de seu trabalho na Síria e na Ucrânia, no Brasil e na Somália, para citar apenas algumas das partes do mundo fortemente afetadas.

A França está muito longe de ser o lugar mais perigoso para os membros dessa profissão, o que significa que a preocupação com a liberdade e segurança de jornalistas não está à raíz da forte reação pública que testemunhamos. Em vez disso, a mobilização sob a bandeira "je suis Charlie", tanto online quanto nas ruas das grandes cidades do Ocidente, tem a ver com o fato de os agressores terem atingido um alvo com quem as pessoas se identificam.

Praticamente qualquer pessoa em Paris, Berlim, Londres ou Nova York poderia ter estado no lugar dos cartunistas franceses, e é por isso que o slogan expressa a identificação emocional com as vítimas cujo lugar "eu" assumo quando proclamo "eu sou Charlie".

Ao mesmo tempo, como é o caso em qualquer identificação, o slogan também transmite o exato oposto de seu significado explícito -ou seja, "eu não sou Charlie". Afinal, aqueles que o usam não foram atacados ou assassinados em 7 de janeiro, embora também se sintam atacados, pelo menos simbolicamente.

Dois perigos se escondem neste dilema.

Por um lado, em termos psicanalíticos, minha recusa em reconhecer a diferença entre eu mesmo e o outro perdido torna melancólica minha identificação com ela ou ele. É previsível que a melancolia preceda o trabalho do luto, que apenas gradualmente aceita a realidade da perda. Contudo, o próprio pensar não terá começado antes de ocorrer o salto da melancolia para o luto.

Por outro lado, reiterar "je suis Charlie" corre o risco inverso de festejar o privilégio dos sobreviventes -o privilégio daqueles que não morreram no ataque e podem dar-se ao luxo de se comprazer em sua solidariedade recém-conquistada, enfatizada em muitos eventos comemorativos. Através de uma espécie de catarse, os participantes no "movimento Charlie" podem então sentir um misto de ansiedade, devida à sua identificação com as vítimas, e de um prazer marcado pela culpa, por terem escapado de um destino tão trágico.

A distorção presente em tudo isso é que "Charlie" não é o nome da pessoa ou das pessoas mortas em Paris nesse dia, mas do jornal para o qual os cartunistas trabalhavam. Assim como as vítimas foram mortas por uma ideia que representavam (a de que nada é sagrado ou está fora dos limites, por exemplo), elas são glorificadas após sua morte em nome da mesma ideia.

Não foi por acaso que, depois de cometer o crime, um dos atiradores gritou "matamos o 'Charlie Hebdo'!". "Je suis Charlie" afirma, pelo contrário, que o "Charlie Hebdo" não foi morto. As duas afirmações perdem uma coisa de vista: que os indivíduos abatidos a tiros não podem ser reduzidos ao projeto, não importa o quanto o projeto fosse importante para eles ou para nós.

Outro modo em que o slogan em questão bloqueia a atividade de pensar está ligado ao fato de não ter sido situado dentro de um contexto histórico. As palavras francesas remetem claramente ao discurso de John F. Kennedy em 1963 "Ich bin ein Berliner", "Eu sou berlinense". Em um mundo recém-dividido pelo Muro de Berlim e a Cortina de Ferro, essa afirmação pretendeu ser um grito de liberdade diante da dominação comunista da Europa do leste.

O próprio Kennedy deixou claro que a fonte da afirmação foi a proclamação "civis romanus sum", "sou um cidadão romano", da antiguidade romana, que ele atribuiu a uma expressão semelhante de liberdade. Na realidade, "civis romanus sum" denotava orgulho por pertencer à comunidade dos cidadãos romanos e era uma declaração dos direitos inalienáveis dos cidadãos. Traça uma linha jurídica separando os romanos, que tinham direito a proteções legais, e os não romanos, que não mereciam nem sequer um julgamento justo.

Quando choramos as vítimas do massacre de Paris, precisamos tomar o cuidado de não converter o sentimento por trás de "je suis Charlie" em um novo "civis romanus sum", o que equivaleria a insistir sobre o status especial dos cidadãos europeus e ocidentais em relação àqueles que vivem (e morrem) em outras partes do mundo. É por isso que erguer a bandeira "je pense, donc je suis Charlie" ("penso, logo sou Charlie") na Place de la République em Paris foi um gesto precipitado e, em última análise, insensato.

MICHAEL MARDER (michaelmarder.org) é professor pesquisador Ikerbasque na Universidade do País Basco, em Vitoria-Gasteiz, Espanha. Entre seus livros mais recentes estão "The Philosopher's Plant: An Intellectual Herbarium" e "Pyropolitics: When the World Is Ablaze".

Tradução de CLARA ALLAIN


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