Folha de S. Paulo


Arquivo Aberto - Sob o signo da pantera

México, 2012

Quase oitenta por cento das imagens do meu novo livro "Antes de Ver", foram fotografadas em não mais que 15 minutos de um dia mágico, 12 de fevereiro de 2012, entre 14h10 e 14h25.

Eu viajava com uma jovem xamã, Maite Irezabal, guia e intérprete. Moderna, trabalhava como tradutora de um grupo de visitantes, mas totalmente xamânica em seu imaginário. O que a tornava magnética. Estávamos num barco, sete pessoas rumo a um sítio arqueológico na selva de Chiapas. Os viajantes crivavam Maite com perguntas, fazendo consultas e pedindo histórias. De costas para o grupo, fingindo não prestar atenção, mas ouvindo tudo, eu fotografava ao léu, muitas vezes sem olhar pelo visor, sem ver o que fazia. Minha mente estava dividida. Eu nunca havia fotografado daquela maneira, sem ver o que estava vendo.

Maite revelou que tinha nove animais totêmicos. Mas só dois tinham rosto, no momento. O mais importante era a pantera negra, o tipo mais raro e nobre dos jaguares. O jaguar tem a medicina (técnica, em seu vocabulário) da impecabilidade e do caminho reto. Maite usa a pantera para analisar tudo que ocorre ao seu redor, sendo sigilosa, elegante e sutil. Contou: "Quando a pantera me olha, de repente seus olhos já estão dentro de mim, e eu consigo ver tudo, nos mínimos detalhes, inclusive microscópicos. Sou rápida, sou ágil, essa é a técnica da pantera. Quando ela me aceita, eu me aceito, e elimino tudo de mim que não seja impecável. Assim, posso fazer qualquer coisa sem sentir culpa".

Arthur Omar/Acervo pessoal
Maite Irezabal em 12 de fevereiro de 2012
Maite Irezabal em 12 de fevereiro de 2012

Seu outro animal é o corvo, muito diferente. Tem a propriedade de mudar de forma. O corvo sempre está aí e, ao mesmo tempo, não está, conseguindo desaparecer, quando decide. Não tem uma identidade fixa e se molda ao que o rodeia. Por isso não tem necessidade de lutar contra nada nem se impor. Maite contou que, quando ela está corvo, só é vista por quem quer. Pode caminhar pelas ruas mais perigosas da Cidade do México e não lhe acontece nada. Para isso, se veste de negro, e visualiza uma bruma negra ao seu redor, que sai do corpo, dá voltas em espiral, até chegar ao cérebro.

Resolvi entrar na conversa e imaginei: se a pantera e o corvo fossem fotógrafos, como eu, o que aconteceria? De que maneira a pantera negra poderia fotografar o mundo, se a sua própria forma é tão intensa que domina todas as outras formas? E ao contrário, o corvo, como fotografaria já que não tem uma identidade e pode se transformar em qualquer forma?

Maite, surpreendida com a pergunta, pensou um pouco, e disse: as formas leem as formas a partir da sua forma. A fotografia normal é a forma do olho humano registrando as formas com que percebe o mundo. Para a pantera, com seu excesso de forma, qualquer forma menor que ela vai se dissolver, porque a forma da pantera é absoluta. As imagens seriam borradas e multidimensionais. Para o corvo, que não tem uma forma fixa e muda de forma o tempo todo, o oposto: qualquer sopro de vento ou rastro de coisa imaterial poderia adquirir a forma e a presença brutal de um bloco de pedra, uma fotografia do vento pesaria uma tonelada.

São extremos da percepção. A fotografia, para reinterpretar o mundo de maneira radical e inovadora, deve recorrer à pantera negra e ao corvo para perceber o que uma câmera fotográfica não foi preparada para perceber, já que moldada nas formas humanas do olhar.

Não lembro como terminou a viagem. Eu sentia a pantera tomando meu corpo, dominando minha experiência. Era tudo que me interessava, não as ruínas na selva.

No dia seguinte, Maite não apareceu no hotel. Esperei no saguão por meia hora. Teria se cumprido a medicina do corvo? Pânico: eu precisava continuar a conversa. Sem saber a que magia recorrer, enviei uma mensagem em inglês ridícula: "Don't disappear, Maite!!! Appear, appear!!! [não desapareça, Maite. apareça!] Abracadabra!!!". Ao que ela respondeu no celular: "Mister Omar, sinto por ter desaparecido. Acordei tão etérea e volátil que me perdi na cidade, e me tornei parte das paredes -estou nelas. Olhe em volta. You don't need any Abracadabra [você não precisa de abracadabra]". Com efeito, de repente, ali estava ela, no saguão do hotel, vestida de preto. E eu não tinha visto! Disse: "Estou aqui há mais de meia hora". Teria permanecido invisível todo esse tempo?

Quando voltei ao Brasil, as portas da percepção se abriram. Examinando as imagens feitas aleatoriamente naqueles 15 minutos a caminho das ruínas de Palenque, as figuras começaram a aparecer. E se transformavam o tempo todo. Ali estava o jaguar, ali estavam os combates do salmão e as ondas do rio, ali estava a revoada de corvos, como num quadro de Van Gogh, ali estavam as armaduras, as imperatrizes, as máscaras e os demônios da selva, os grifos da escrita maia, Nefertiti, o lagarto e a morte.

Figuras que só eu via, mais ninguém, e por uma breve fração de segundos. Desapareciam da tela com a mesma velocidade com que haviam surgido. Nem pareciam fotografias. Teria eu adquirido o privilégio de ver o que havia se passado comigo antes de ver? Logicamente seria impossível. Tratava-se, talvez pela primeira vez, ao menos para mim, de uma fotografia feita não sob o signo de Cartier-Bresson, o maior de todos, mas sob o da pantera negra, como aprendi no caminho da selva com a jovem xamã Maite, diferente de tudo que eu havia feito antes.

Trabalhei 15 semanas com a amiga e artista Ana Dantas, que me ajudou a fixar as imagens fugidias. Às vezes eu não via a figura, e só ela via; ou ao contrário, e tínhamos disputas perceptivas. Tudo se fragmentava e se reconstituía, porque as portas da percepção eram atravessadas em todos os sentidos, indo e voltando.

ARTHUR OMAR é fotógrafo, artista plástico e cineasta, vive no Rio de Janeiro, autor de "Antes de Ver" (Cosac Naify).


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