Folha de S. Paulo


Leia trecho de biografia romanceada de Arthur Schnitzler

SOBRE O TEXTO Este trecho faz parte do primeiro capítulo de "Juventude em Viena: uma Autobiografia", que a Record lança no início de fevereiro. A biografia romanceada escrita de 1915 a 1920 narra a vida do autor até 1889, antes de conhecer a fama como escritor com a novela "O Tenente Gustl", publicada em 1900.

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Nessa época, ou seja, quando eu tinha 4 ou 5 anos de idade, é que surge meu primeiro camarada de brincadeiras do qual me lembro, um jovem conde Kalman, cujo pai era paciente do meu. Eu por certo não saberia mais com que brincadeiras nós, ainda tão garotos, passávamos o tempo, se não tivesse me ficado na memória uma pergunta peculiar, que fiz certa vez à minha babá, provavelmente por causa de seu absurdo especial, do qual eu logo viria a me dar conta. Nós havíamos disposto nossos soldados de madeira em ordem de batalha sobre o tampo branco da mesinha em que brincávamos, quando me ocorreu de repente me informar com minha babá quem na verdade eram os inimigos, se os de bainhas verdes ou se os de bainhas vermelhas. A babá repassou a pergunta à babá dos Kalman com a mesma seriedade, e esta designou, com a maior determinação, os vermelhos como sendo os inimigos, ao que me decidi, tranquilo, aceitar a batalha, já não me lembro mais se na condição de amigo ou de inimigo.

David Magila

O parque verde junto à Schottenbastei era o assim chamado Jardim Paradisíaco ou Jardim do Paraíso, que em minha recordação mal aparece como um jardim real, mas antes como uma aquarela empalidecida. Vejo diante de mim um gramado verde com canteiros de flores, mesas e cadeiras graciosas diante de um prédio alongado e branco de janelas altas; aos pés de uma criatura feminina, que senta do lado direito de um banco, uma criança de roupas claras está brincando; e, em algum lugar, cintila um guarda-sol vermelho. Será que sou eu mesmo essa criança? Será que essa criatura feminina é minha babá? Será que é minha mãe? Será que a recordação de coisas vividas se funde, conforme tantas vezes acontece, a coisas relatadas, formando a imagem de uma aquarela que vi em algum lugar? Eu não sei. O verdadeiro Jardim do Paraíso, de todo modo, desapareceu do mundo já ao final dos anos 1860, assim como a Löwelbastei, sobre o qual ele floriu por tantos anos. Mais ou menos no mesmo lugar fica o Burgtheater hoje em dia.

Por volta de 1868 nós nos mudamos para a Giselastrasse, número 11, ao mesmo apartamento, inclusive, caso eu não esteja enganado, em que nos anos 1890 eu ocuparia alguns quartos na condição de jovem médico. Foi nesse apartamento, onde eu costumava deixar prontos, todas as manhãs, dois banquinhos, um para mim, outro para meu irmão três anos mais novo do que eu, nos quais disputávamos quem resvalava mais rápido em cima deles; foi lá, também, que certa noite vi da janela as chamas saindo do prédio da Associação de Música, que ficava bem próximo; foi lá, ainda, que eu, bem-penteado e vestido com belas roupas, de vez em quando podia conversar com os pacientes de meu pai na sala de espera. Recordo-me que meus camaradas de brincadeiras naquela época, ambos com idade semelhante à minha, eram os dois filhos do príncipe romeno Couza, que havia sido expulso de seu país e era paciente de meu pai, e também me parece que igualmente encontrei por lá o já um pouco mais velho Milan Obrenović, que mais tarde se tornaria rei da Sérvia, e que na época morava com sua mãe na Döblinger Hauptstrasse, em uma casa de campo situada na frente da casa do príncipe Couza.

Certa vez, quando já estava quase anoitecendo e eu me encontrava lendo à janela, conforme costumava fazer até altas horas da noite para orgulho e desencanto de meus pais ao mesmo tempo, chegou um coche lotado com os brinquedos mais luxuosos para mim e meu irmão mais novo; era um presente principesco dos Couza, que devia ser saudado de modo tanto mais principesco pelo fato de não estarmos nem no Natal, nem na Páscoa, nem termos qualquer outra festa de aniversário a comemorar. O mais belo dos brinquedos era um jardim liliputiano com tronquinhos de madeira marrom, folhas de papel verde, canteiros coloridos e gramados; mas nem com ele nem com qualquer outro dos brinquedos das caixas restantes eu me ocupei de modo muito vivaz depois que a primeira curiosidade se encontrava satisfeita, como aliás de resto não costumava me interessar de modo especial por brinquedos de criança, mesmo naqueles anos ainda bem precoces.

Embora em nosso quarto de crianças também não faltasse o teatro de bonecos, não acredito ter me distinguido, apesar de tentativas eventuais, como poeta, narrador, manejador de personagens, ou pelo talento inventivo ou mesmo por qualquer outro dote teatral no âmbito dos bonecos. O que me proporcionava um prazer bem maior era o teatro de verdade, que logo era exercido de improviso e sempre com fervor nos círculos familiares com primos e primas, e mais tarde fora de casa com amiguinhos e amiguinhas, sobretudo com os filhos do famoso ator Sonnenthal e os filhos de um comerciante de roupas da moda chamado Von Rosenberg.

Na maior parte das vezes, era eu que esboçava de passagem o andamento do enredo, sendo que falas e contrafalas fluíam conforme o gênio individual de cada um no momento dado. Espectadores sérios, ou mesmo fiéis, jamais participaram dessas apresentações; e nós nos satisfazíamos com a alegria da peça em si e com os aplausos mútuos. Para os pequenos namoricos e ciumeiras que costumam vicejar em tais atmosferas nós ainda não éramos suficientemente crescidos; só me lembro de uma noite em que uma coleguinha, depois de eu ter me despedido dos camaradas de peça do sexo masculino com abraços infantis e amistosos, veio correndo atrás de mim até a porta do apartamento para se voltar a mim com palavras hesitantes e dizer: "Dá um beijo também em mim", desejo que eu atendi, não sem me autovangloriar internamente, com as faces ainda coradas pela excitação da atividade teatral.

ARTHUR SCHNITZLER (1862-1931), médico e escritor austríaco, escreveu "O Médico das Termas", "A Ronda", entre outros.

MARCELO BACKES, 41, é escritor e tradutor, autor de "A Casa Cai" (Companhia das Letras).

DAVID MAGILA, 35, é artista plástico e abre sua primeira individual em março na galeria Contempo.


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