Folha de S. Paulo


Arquivo Aberto - Um marxista heterodoxo

Em 1966, entrei em contato com o professor Albert Soboul (1914-82), da Sorbonne, especialista na história da Revolução Francesa, para retomarmos as relações entre a USP e a Sorbonne. Ele já tinha livro publicado no Brasil pela editora Zahar e era uma "estrela" em congressos e na mídia.

Sabíamos de sua visão pouco ortodoxa da Revolução -apesar de marxista respeitado, amigo de Hobsbawm- pois demonstrara que os "sans-culottes" não constituíam uma classe social, um anátema para os marxistas dogmáticos de então. Albert Marius Soboul, que lutara na Resistência no sul da França, era uma contraposição à Escola Prática de Altos Estudos e à visão de François Furet, que descaracterizara a Revolução enquanto tal. Soboul ficou entre dois fogos: marxistas dogmáticos e neoliberais da Escola de Altos Estudos...Era o historiador!

Hélio Campos Mello/Acervo Pessoal
Carlos Guilherme Mota (esq.) em sua casa em São Paulo com o historiador francês Albert Soboul em 1972
Carlos Guilherme Mota (esq.) em sua casa em São Paulo com o historiador francês Albert Soboul em 1972

Em 1967, escrevi-lhe e ele me recebeu em Paris em setembro, num café em frente à Sorbonne. Tímido e duro, eu falava um péssimo francês, mas houve uma comunicação desde logo fraterna com aquele "monumento".

Tratamos de temas historiográficos e metodológicos, mas com críticas aos modismos. Ele foi extremamente gentil, ofereceu-me um livro seu e desde então firmou-se uma amizade forte, que durou até sua morte.

Como professor visitante da USP, Soboul veio a São Paulo várias vezes, uma das quais ficou em minha casa; depois, fiquei na dele, no bairro parisiense de Montparnasse, onde receberia alguns exilados com poucos recursos. Fomos juntos às cidade históricas de Minas,em 1970, com Gigi, minha mulher na época, e o historiador Francisco Iglésias, que o brindou cantando "Azulão" na noite de Ouro Preto.

Pesquisador excepcional, professor rigoroso e jovial, ele apreciava nossas caipirinhas.

Desempenhava com seriedade seu papel de professor em missão, na tradição de grandes historiadores da Revolução Francesa (Jaurès, Mathiez e outros). Aqui no Butantã e alhures, protestou contra a prisão de intelectuais (como Caio Prado Júnior) e cassação de professores (como Florestan Fernandes).

Florestan era o principal intelectual da chamada Escola Sociológica de São Paulo e Soboul fez questão de visitá-lo em sua casa, em 1970, para prestar-lhe solidariedade. Duas personalidades reconhecidas internacionalmente, homens de esquerda e militantes nada dogmáticos, trocando impressões sobre os rumos do Brasil e da história contemporânea.
Foi emocionante ouvi-los, pois conversavam num patamar muito alto, raro mesmo. Hoje, creio que o nível baixou bastante.

Ser professor, para Soboul, era uma missão inegociável, de combate, inclusive à burocracia universitária.

Soboul tinha discípulos e colegas em todo o mundo, que recebia em Paris com muita fraternidade. Fiquei comovido quando aceitou um estudo meu sobre as Inconfidências no Brasil para ser publicado na venerada revista "Annales Historiques de la Révolution Française", que dirigia com meu outro mestre, o "doyen" Jacques Godechot, de Toulouse.

Era ainda muito amigo do português Joaquim Barradas (1920-80), outro marxista heterodoxo e bom de copo.

CARLOS GUILHERME MOTA, 73, é historiador, professor emérito da USP e professor titular da Universidade Presbiteriana Mackenzie.


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