Folha de S. Paulo


Crítica: Romance de Miranda July é comovente retrato da maternidade

O primeiro romance da cineasta e artista Miranda July é como uma daquelas estranhas criaturas mitológicas que são parte uma coisa, parte outra - um grifo ou quimera, talvez, ou uma esfinge. O romance começa hesitante, depois se torna derivativo e deliberadamente sensacionalista, ao modo do teatro do absurdo de Pinter e Genet, e por fim passa por uma mutação miraculosa que faz dele um comovente retrato da maternidade e do que significa cuidar de uma criança.

Cheryl Glickman, a narradora de "The First Bad Man", inicialmente é apresentada como versão extrema de uma daquelas depressivas personagens femininas de meia-idade de Anne Tyler, afundada em um marasmo de baixas expectativas e energia ainda menor.

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A multiartista americana Miranda July, que lança o romance
A multiartista americana Miranda July, que lança o romance "The First Bad Man"

"Digamos que uma pessoa esteja bem por baixo, ou que simplesmente seja preguiçosa", Cheryl diz, "e deixe de lavar a louça. A louça não vai demorar a chegar ao teto, e vai parecer impossível lavar nem mesmo que apenas um garfo. Por isso a pessoa começa a comer com garfos sujos, em pratos sujos, e isso faz que ela se veja como moradora de rua. Assim, ela para de tomar banho. O que faz com que sair de casa se torne mais difícil. Ela começa a jogar o lixo em qualquer lugar e a urinar em copos, porque eles ficam mais perto da cama".

A solução, insiste Cheryl, está naquilo que ela define como seu "sistema" - abrir mão de coisas (a louça "não vai se empilhar na pia se você não tiver pratos") e conservar energia ("você não pode ler o livro em pé ao lado da estante, com seu dedo segurando o lugar no qual o colocará de volta? Mas o melhor mesmo é nem ler".)

Esses pronunciamentos são ridículos, claro, mas seu objetivo parece ser o de sublinhar até que ponto Cheryl está deprimida -ou iludida. Descobrimos que ela trabalha há anos para uma organização chamada Open Palm, que começou como uma escola de caratê reaproveitada para ensinar autodefesa a mulheres, e depois passou a vender vídeos de exercícios e autodefesa.

Cheryl há muito é apaixonada por Phillip, um membro mais velho do conselho da organização - sempre que o vê, ela precisa "resistir à tentação de chegar perto dele como uma esposa, como se já fôssemos um casal há duzentas mil gerações. Homem e mulher das cavernas". O relacionamento só existe na imaginação de Cheryl, mas ela se diz que tudo poderia "mudar em um instante" se ela telefonasse para ele ou corresse para seus braços.

O que tira Cheryl de seu mundo de fantasia é a chegada de uma hóspede inesperada à sua casa. Clee, 20, é filha de seus empregadores, e eles dizem a Cheryl que ela precisa de um lugar para ficar em Los Angeles até encontrar um emprego e um apartamento. Clee é uma "loira bronzeada, com corpo em larga escala", e muito mal educada.

Ela toma posse da sala de estar, bagunça a cozinha e se recusa a tomar banho, o que causa mau cheiro na casa. Também irradia uma espécie de versão loira burra do ar de ameaça de um personagem de Pinter; ela é sarcástica, mandona, e começa a empurrar Cheryl e tirá-la de seu caminho com "uma arrogância de bandida".

E a essa altura o romance de July passa por uma virada ainda mais esquisita e adentra o território de Genet. Cheryl reage ao comportamento agressivo de Clee com as manobras de autodefesa aprendidas nos DVDs da Open Palm, e encoraja Clee a seguir atacando de acordo com os cenários fictícios dos vídeos - uma brincadeira que se torna tanto um exercício de poder quanto uma empreitada bizarramente sexual, já que Cheryl passa a se imaginar no papel de Phillip (que a rejeitou por uma mulher mais nova).

Confuso? Sem dúvida o objetivo é que assim seja, para espelhar a confusão de Cheryl sobre sua identidade e sua maneira de pensar cada vez mais distorcida.
Esses desdobramentos são descritos em termos deliberadamente grotescos, até mesmo repelentes, como se July - cujos filmes (um dos quais incluía um gato falante) atraíram críticas por serem afetados e bonitinhos - quisesse rebater as acusações de que tenta parecer fofa sendo o mais repelente que podia.

Muitas dessas passagens parecem gratuitas e forçadas: uma terapeuta que guarda sua urina em embalagens de comida chinesa em lugar de ir ao banheiro; os pés de Clee, descritos como fedendo a um "pungente fungo cujo fedor toma as narinas dois segundos depois que ela passa"; e 100 caramujos entregues pelo correio que passam a rastejar pela casa de Cheryl.

O que ajuda a narrativa a transpor cenas assim irritantes é o subtexto que lida com a radical solidão de Cheryl e seus esforços desordenados para se comunicar. É só quando Cheryl transcende sua obsessão para consigo mesma e sua tendência a se defender (o que a faz considerar relacionamentos como "jogos" ou simulações, e não interações humanas) que ela começa a estabelecer algumas conexões genuínas.

No terço final do livro, July também deixa de lado a autoconsciência que prejudica porções anteriores do texto, ao escrever sobre a descoberta do amor materno por Cheryl com emoção escancarada e grande poder. Conversando com o filhinho de Clee, que luta contra a morte no hospital, conectado a toda espécie de máquina, ela tenta explicar a ele como os seres humanos existem, no tempo: "É isso que é viver; você o está fazendo agora, como todo mundo mais.

Eu conseguia perceber que ele estava decidindo. Ele estava avaliando, e não tinha chegado a conclusões até ali. O lugar quente e escuro do qual tinha vindo comparado a esse mundo brilhante, ruidoso, seco".

"Tente não basear sua decisão nesse quarto; ele não é representativo do mundo mais amplo", ela prossegue. "Em algum lugar o sol aquece uma folha espessa, nuvens desenham formas e depois as mudam e mudam, uma teia de aranha está rompida mas ainda funciona. E caso ele não curta a natureza, eu acrescento: E o momento é bem louco em termos de tecnologia. Você provavelmente terá um robô, e isso será normal."

"THE FIRST BAD MAN"
AUTORA Miranda July
EDITORA Scribner
QUANTO US$ 25 (276 págs.)

O livro será publicado no Brasil pela Companhia das Letras ainda no primeiro semestre deste ano sob o título "O Primeiro Homem Mau".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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