Folha de S. Paulo


Região do sul da China produz 60% das reproduções de arte do mundo

RESUMO Dafen, região de Shenzhen, no sul da China, produz cerca de 60% das reproduções de pintura do mundo -no topo da lista estão obras de Monet e Van Gogh. Tema de livro e documentário, o local levanta questões centrais para a teoria da arte, como a identidade do artista e o valor da imitação.

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Imagine ter uma pintura de Monet na sala de sua casa, ou de Van Gogh, ou de Klimt. Não uma impressão sobre papel, mas um óleo sobre tela. Pois para quem não tem cifras que giram em torno dos US$ 100 milhões (R$ 270 milhões) -"O Retrato de Adele Bloch-Bauer II", de 1912, de Klimt, foi vendido em 2006 por cerca de US$ 88 mi (R$ 237 mi)- e não se importa com autenticidade, há opções na China.

O país dos grandes números e das cópias não fica atrás no quesito pinturas e produz, em um só lugar, cerca de 60% das reproduções de arte do mundo. Dafen, intitulado o bairro da pintura a óleo, na periferia de Shenzhen, cidade no sul da China, reúne em torno de 5.000 artistas.

A região repleta de lojas, ateliês e galerias -onde são pintadas e vendidas cópias de pinturas dos grandes mestres tanto das artes ocidentais quanto da arte chinesa- é tema do documentário "Affordable Art" (arte acessível) que o cineasta Loh Yeuk Sun, chinês de Hong Kong, está finalizando.

Loh Yeuk Sun/Divulgação
Artistas trabalham em oficina de Dafen em cena do documentário
Artistas trabalham em oficina de Dafen em cena do documentário "Affordable Art"

Sun, que foi diretor de programas de televisão e já esteve no Brasil para o Festival Internacional de Curtas de São Paulo em 2011 com o filme "Random Travel" (viagem aleatória), conta à Folha que na primeira visita que fez ao local se sentiu hipnotizado. "É surpreendente ver tantos pintores nas ruas ou do lado de fora das galerias desenhando a óleo com grande habilidade e eficiência", diz.

"Aquilo me fez pensar se existe arte naquelas cópias profissionais. Quando conversei com eles percebi que a maioria daqueles pintores ama tanto pintar que extrai satisfação no processo, mesmo que seja apenas uma imitação vendida por preços tão baixos."

Em Dafen, e também on-line em galerias que entregam em diversos países do mundo, é possível comprar réplicas dos girassóis de Van Gogh por US$ 50 (cerca de R$ 135).

Vídeo

Shenzhen é também sede do parque Window of the World (janela do mundo), semelhante ao parque menor próximo a Pequim que serve de cenário ao filme "O Mundo" (2004), de Jia Zhang-ke. Aberto em 1994, o espaço reúne 130 reproduções em tamanho reduzido de marcos de diferentes lugares do mundo, como o Taj Mahal, as pirâmides do Egito e a Torre Eiffel, em escala de 1:3. É como dar a volta ao mundo em um dia.

MODELO

Em 2004, Dafen foi elevada a modelo de indústria cultural. Na ocasião, o governo chinês, respondendo a acusações de violações de direitos autorais do Ocidente, alegou que, graças às habilidades de imitação dos artistas dali, consumidores de todo o planeta podiam ter acesso ao mundo da grande arte, como conta Winnie Wong em "Van Gogh on Demand: China and the Readymade" [University of Chicago Press; 320 págs., R$ 66,71, e-book na Livraria Cultura].

O livro da professora da Universidade da Califórnia em Berkeley parte do caso de Dafen para investigar a relação entre a apropriação chinesa da cultura ocidental e a construção no imaginário do Ocidente de uma China que representa o mimetismo por excelência.

A cópia como método de aprendizagem, comum nas academias de artes no mundo todo, faz parte da cultura chinesa e de sua pedagogia, ligada ao pensamento de Confúcio, para quem copiar é um exercício de humildade, grande valor de seus ensinamentos.

No bairro de pintores, donos de oficinas contratam e treinam centenas de aspirantes a artistas e camponeses que abandonaram o meio rural mudando-se para Shenzhen, uma das Zonas Econômicas Especiais do país.

"Se você for eficiente e tiver habilidades básicas de desenho você pode trabalhar ali", afirma Sun. "Com exceção daqueles que passaram por escolas de artes nas grandes cidades, muitos dos pintores não estão interessados nos artistas das pinturas originais e não têm conhecimentos sobre esses personagens. Eles estão preocupados com o tamanho da pintura, porque é o tamanho que determina o preço."

Desde 2008, existe um órgão fiscalizador de violações de direitos autorais em Dafen. Porém, ainda que a lei chinesa permita reproduções de artistas que morreram há mais de 50 anos, os quadros de Salvador Dalí, morto em 1989, por exemplo, estão entre os copiados. Os outros favoritos em Dafen são Monet, Van Gogh, Bouguereau, Klimt e o russo Ivan Chichkin.

Ainda que existam pintores originais na região e copistas que realizam todas as etapas de um mesmo quadro -estes mais caros-, grande parte dos empregados ali executa tarefas como em uma linha de montagem.

Cerca de um terço do valor da venda do quadro fica com os pintores. "Eles encaram isso como um trabalho e o fazem para sobreviver, recebem ordens e repetem a tarefa como trabalhadores de fábricas. Mas o dinheiro que recebem é bem mais do que o salário de uma fábrica qualquer na China e as condições de trabalho também são muito melhores", afirma Sun.

Há também artistas recém-saídos das escolas de artes que, por conta da grande concorrência em Xangai e Pequim, começam a carreira em Dafen. "Eles insistem em fazer pinturas originais, muitas vezes por um preço abaixo da cópia."

Em seu livro, Wong defende que Dafen não é apenas onde são feitas "cópias chinesas 'perfeitas' de originais 'verdadeiros' ocidentais" por trabalhadores explorados em más condições de trabalho, mas um lugar que abarca práticas artísticas eminentemente modernas e contemporâneas. Para ela, assim como os artistas conceituais, os de Dafen levantam questões centrais para a história e a teoria da arte, tais como técnica, habilidade, delegação, autoria, fotografia, gênero e participação do Estado.

Segundo Sun, artistas chineses famosos vão em busca das habilidades técnicas dos pintores de Dafen para finalização de seus próprios trabalhos, antes de vendê-los pelo preço que o prestígio de seus nomes acrescenta às obras. Para ele, o local estimula a discussão sobre a comercialização da arte, a identidade do artista e do pintor copista e sobre os valores da arte e de sua imitação.

DANÇA DAS PAREDES

Ainda que a região próxima ao porto de Hong Kong tenha ligações com a pintura desde o século 18, com número crescente de oficinas nos anos 1980, e que exista uma demanda de pinturas para exportação para a Europa no sul da China desde a década de 1760, o governo criou uma narrativa oficial de "fundação" de Dafen que remete a apenas um homem: Huang Jiang, um negociante de Hong Kong que fundou "a primeira" oficina de pintura em Dafen em 1989.

A região conheceu o auge da fama e das vendas em meados dos anos 2000, exportando cerca de US$ 193 milhões (R$ 521 milhões) entre 2006 e o começo de 2008, segundo a Associação da Indústria de Arte de Dafen. Porém, a região sentiu as consequências da crise financeira que atingiu os Estados Unidos e a Europa -então maiores compradores de suas reproduções.

"A maioria dos quadros vendidos em Dafen são para decoração de ambientes, não apenas de casas, mas de hotéis e centros de compras", explica Sun. "O cliente pode até ter algum conhecimento de arte, mas não tem dinheiro o suficiente para comprar obras de artistas conhecidos."

Em 2012, as exportações em Dafen caíram 50% e os chefes das mais de 1.200 oficinas tiveram de cortar seu pessoal. Hoje, praticamente recuperada, a região dá mais atenção ao gosto local e, além de reproduções ocidentais em óleo, produz cópias de arte tradicional do país. Criações originais respondem por cerca de 20% das vendas. Afinal, apesar da crise imobiliária nos EUA, as paredes chinesas não param de subir e precisam de quadros para serem pendurados nelas.

ÚRSULA PASSOS, 27, é redatora da "Ilustríssima".


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