Folha de S. Paulo


Chineses criam mundo espelhado que começa a mudar a ordem mundial

RESUMO Com visão e planejamento de longo prazo, Pequim vem tecendo sem alarde, mas sistematicamente, uma estrutura internacional paralela. Formada por uma série de organizações e mecanismos financeiros, ela começa a mudar a ordem mundial construída no pós-guerra, sob a liderança dos Estados Unidos.

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Até uma década atrás, turistas chineses que viajavam pelo mundo eram alvo preferencial de ladrões. Sem possuir cartões de crédito, a maioria circulava com o bolso cheio de dinheiro vivo e eram presas altamente rentáveis para os gatunos.

Isso começou a mudar em 2002, quando surgiu o cartão bancário UnionPay, a resposta chinesa para os gigantes americanos Visa e Mastercard. Desde então, a empresa já emitiu mais de 4,5 bilhões de cartões. Embora pouco conhecido fora da Ásia, o UnionPay já pode ser usado em 141 países, inclusive no Brasil (associado ao Itaú), e tornou-se o segundo cartão no mundo, só atrás do Visa.

O desafio chinês ao domínio americano no mercado do "dinheiro de plástico" é apenas uma das pontas da teia global que Pequim vem tecendo sem alarde, mas sistematicamente. Uma estrutura internacional paralela, formada por uma série de organizações e mecanismos financeiros, que começa a mudar a ordem mundial construída no pós-guerra, sob a liderança dos Estados Unidos.

Carlos Barria - 7.dez.2014/Reuters
Cartaz gigante de uma loja de roupas no centro de Xangai
Cartaz gigante de uma loja de roupas no centro de Xangai

Os acordos de Bretton Woods (1944) fincaram os alicerces para o funcionamento da economia mundial, numa arquitetura financeira acertada entre 44 países que resultou, entre outras coisas, na criação das instituições multilaterais de socorro, o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial.

Na época, Harry Dexter White, alto funcionário do Tesouro dos EUA que liderou as discussões ao lado do economista britânico John Maynard Keynes, comentou os novos ares que colocavam Washington e Moscou como os dois polos de poder global, encerrando um ciclo de três séculos do império britânico. "A União Soviética é um país que está chegando, o Reino Unido é um país que está indo embora", disse White.

Sete décadas depois, o país que chega é a China.

ENVERGADURA

Em um estudo recente, o Instituto de Estudos Chineses Mercator (Merics), sediado em Berlim, mapeou as iniciativas da China que delineiam um mundo paralelo ao atual arcabouço econômico global. A envergadura do repertório chinês impressiona. Algumas das iniciativas:

Novas instituições multilaterais de crédito, como o Banco de Desenvolvimento dos Brics (criado em julho) e o Banco de Infraestrutura e Investimento da Ásia (BIIA, cujo lançamento foi assinado por 21 países em outubro); a internacionalização de sua moeda, o yuan, com acordos bilaterais de "swap" e a disseminação do cartão UnionPay; a nova Rota da Seda, o ambicioso plano de reviver a ligação comercial entre a China e a Europa, via Ásia Central; até projetos que vão muito além de seu entorno asiático, como o canal da Nicarágua -uma alternativa ao do Panamá que começa a ser construído em breve com capital chinês.

"Os desafios atuais ao arranjo pós-Guerra Fria dominado pelos EUA, da Ucrânia ao Oriente Médio, favorecem a expansão das estruturas paralelas como parte da política externa chinesa", concluem os pesquisadores alemães. Além de manter os EUA ocupados, permitindo que a China mova suas peças geopolíticas com mais desenvoltura, a crise na Ucrânia aproxima Moscou de Pequim, como comprova o acordo multibilionário de energia entre os dois países assinado em maio.

Mikko Huotari, chefe do Programa de Política Externa e Relações Econômicas do Merics e um dos autores do estudo, contesta a visão alarmista de que a China está tentando demolir a estrutura atual. Ao mesmo tempo em que mantem a participação e tenta aumentar sua voz nas instituições existentes, diz ele, o país promove outras que possam satisfazer de forma mais adequada os seus interesses.

"Há uma insatisfação muito clara entre os formuladores de política externa da China com a forma como as coisas funcionam globalmente", disse Huotari à Folha. "Se o sistema não está se adaptando às necessidades da China, a sensação entre eles é de que podem e devem fazer algo a respeito."

O governo chinês insiste em que as novas instituições não representam uma competição com a estrutura existente. "Nosso objetivo é contribuir com o potencial de construção de infraestrutura na Ásia e incentivar o investimento na região", disse à Folha a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, Hua Chunying. "O BIIA e o banco dos Brics terão um papel complementar aos mecanismos existentes."

Em Washington, certamente as ações chinesas são vistas como um desafio a sua hegemonia. O governo americano não fez nenhuma questão de esconder a intensa campanha que realizou entre os aliados para que não entrassem no banco asiático encabeçado por Pequim. Deu certo, por enquanto, com Coreia do Sul, Austrália e Japão. Mas não com a Índia, um dos 21 países fundadores do BIIA.

Um fato que não está em disputa e favorece a máquina de construção chinesa é o déficit de infraestrutura, na Ásia e no mundo em geral. O Banco de Desenvolvimento Asiático (BDA) estima que só o Leste da Ásia precisará de investimentos na ordem de US$ 8 trilhões em infraestrutura até 2020 para manter o crescimento econômico.

"O consenso termina aí", assegura Ely Ratner, do centro de estudos New American Security em artigo na revista "Foreign Policy". Afinal, diz ele, ao oferecer uma instituição de crédito alternativa ao Banco Mundial e ao BDA a China claramente fortalece sua influência na Ásia e reduz a liderança regional dos Estados Unidos.

Embora a ameaça pareça iminente aos olhos americanos, a engrenagem que Pequim está montando ainda está engatinhando. Para construir bancos internacionais é preciso ter uma capacidade de mão de obra que é limitada nos países emergentes, lembra o diplomata Marcos Caramuru de Paiva.

Ex-cônsul do Brasil em Xangai, hoje sócio e gestor da KEMU Consultoria, com sede na cidade chinesa, ele vê o desenho de uma nova arquitetura mundial, mas que só a "longuíssimo prazo" poderá ter algum impacto. O diplomata percebe que, embora a China tenha amadurecido nos últimos anos em política externa, não está claro para os líderes em Pequim como suas ações moldarão o mundo.

"Não é um projeto de poder, mas de influência econômica. Os EUA tinham um projeto político, de democracia casada com o capitalismo. A China não tem um projeto político para exportar. Tem um projeto econômico, muito centrado na área de infraestrutura, na qual suas empresas brilharam nos últimos anos", diz Caramuru, que também é colunista da Folha.

YUAN

A internacionalização da moeda chinesa tem um papel central na política externa econômica de Pequim de aumentar sua autonomia em relação às estruturas financeiras dominadas pelos EUA. Desde junho deste ano, o Banco Popular da China (o BC chinês), assinou acordos para a criação de bancos e compensação em Londres, Frankfurt, Seul, Paris, Luxemburgo, Doha, Toronto e Sydney.

A marcha do yuan para se tornar uma das moedas globais de reserva é visível. O dólar americano permanece como a moeda dominante, mas em cinco anos o yuan saiu praticamente do zero para ser hoje usado em 15% do comércio mundial.

"O progresso que o BC chinês obteve nos últimos cinco anos é incrível", diz Mikko Huotari. Avançar com tal velocidade nesses processos altamente complexos de cooperação financeira é algo que ele considera "sem precedentes".

Os mecanismos financeiros promovidos por Pequim duplicam em parte o sistema de Bretton-Woods e outras estruturas existentes, mostra o estudo alemão: para o Banco Mundial, o Banco dos Brics; para o FMI, o fundo de reservas do Brics e a Iniciativa Chiang Mai, uma rede asiática multilateral de financiamento; para o Visa e Mastercard, o UnionPay, entre outros muitos exemplos.

As organizações internacionais do pós-guerra refletiram e disseminaram os valores dos Estados Unidos, que protegeram seu interesse nacional por meio de uma arquitetura internacional favorável e sob o seu controle, lembra Evandro Menezes de Carvalho, professor de Direito Global da FGV-Rio e professor visitante do Centro Brics da Universidade Fudan, em Xangai.

CÓPIA

O mundo mudou, mas as instituições internacionais mantiveram a mesma divisão de poder do pós-gerra. A reforma do FMI, acordada em 2010 e que dá aos emergentes mais poder de voto, está parada no Congresso americano. Para Carvalho, as incertezas sobre o futuro, potencializadas com a crise financeira de 2008, puseram os países em situação de alerta, "reativos e incapazes de pensar a longo prazo". A exceção é a China.

"É um dos poucos países que está planejando a sua política externa a longo prazo. E o faz por meio do método pelo qual a China tornou-se famosa no Ocidente: a cópia", diz Carvalho. "A China cria instituições-espelho do sistema internacional, mais próximas da sua imagem, sem alterar os princípios basilares da sociedade de Estados, que são o respeito à soberania e a não ingerência em assuntos internos de governos estrangeiros."

Para ele, a emergência de "novos desenhos institucionais para o mundo" favorece o Brasil em sua demanda por maior participação em instituições internacionais.

Já Marcos Caramuru acha que o Brasil sai perdendo. No banco dos Brics, por exemplo, as empresas do país não terão força para ganhar das chinesas em concorrências para os projetos, afirma.

"Esses novos bancos de crédito vão consolidar a presença de muitas dessas empresas chinesas", diz ele. "Temos que ter uma estratégia. A China é muito forte, tem recursos na mão, empresas que se fortaleceram muito, um sistema financeiro comandado pelo Estado. É um competidor pesado, nos tira de vários mercados."

No aspecto político, o que em princípio poderia ser considerado uma vantagem, a não ingerência em assuntos domésticos, tem outro lado, que é motivo de preocupação. Ao contrário do Banco Mundial e do FMI, que dita uma cartilha de exigências sobre temas como meio ambiente e condições trabalhistas, o presidente chinês, Xi Jinping, já disse que Pequim oferece assistência "sem amarras políticas".

Em alguns casos, essa política significa o envolvimento em práticas contestadas, que provocam resistência das populações locais. Um exemplo é a hidrelétrica de Myitsone, em Mianmar, um projeto de US$ 3,6 bilhões de uma empresa chinesa que está parado desde 2010 por oposição das comunidades que seriam deslocadas.

Outro tiro pela culatra, mais recente, foi a revogação de uma licitação de US$ 3,7 bilhões para um projeto de trens de alta velocidade vencida no México pela estatal China Railway Construction Corp (CRCC). O governo mexicano justificou o cancelamento citando "dúvidas do público" sobre a lisura da concorrência, na qual o consórcio vencedor era o único na disputa.

O enredo ganhou contornos de escândalo nacional quando uma reportagem revelou que a mansão de US$ 7 milhões da primeira-dama estava em nome de um dos parceiros mexicanos do consórcio liderado pela CRCC.

MARCELO NINIO, 48, é correspondente da Folha em Pequim.


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