Folha de S. Paulo


Condomínios em Miami vendem luxo com arte

"Vou explicar por que esse projeto é exclusivo", diz a corretora de imóveis Magda Ruby. "Esse é o último pedaço de terra em Bal Harbour. É um terreno de 27 mil metros quadrados com vista para o mar nos dois lados. E os lobbies vão ter obras de Jeff Koons. Você sabe que ele acabou de vender uma escultura na Christie's por US$ 58 milhões, né? Aqui vai ser como viver num museu de arte contemporânea."

No escritório de vendas do Oceana Bal Harbour, no extremo norte de Miami Beach, o pedaço do balneário norte-americano que vai afinando Atlântico adentro com água azul-turquesa por toda parte, a vendedora brasileira tenta me convencer -em bom português- dos encantos do mais novo empreendimento imobiliário do empresário argentino Eduardo Costantini.

O dono do Museu de Arte Latino-americana de Buenos Aires, famoso por ter comprado o "Abaporu", de Tarsila do Amaral, está erguendo agora seu segundo condomínio em Miami. O primeiro deles, já concluído e com todos os apartamentos vendidos menos a cobertura, que vale US$ 27 milhões, tem murais da artista Beatriz Milhazes e esculturas de Artur Lescher. Fica em Key Biscayne, no outro extremo do pedaço de terra que é Miami Beach.

Nos dois condomínios, Costantini implantou a mais nova modalidade de especulação imobiliária envolvendo obras de arte. Na compra do imóvel, moradores dos apartamentos ali viram sócios das obras que decoram as áreas comuns, podendo votar em reuniões de condomínio para leiloar as peças.

"Não é o espírito do projeto que as pessoas vendam as obras", diz Costantini, por telefone, de Buenos Aires. "Sou colecionador há 40 anos e, em todas as minhas casas, estou rodeado de obras de arte, então é natural incluir arte nos empreendimentos imobiliários, já que isso também vai ser a casa das pessoas. E, como investimento, é claro que as obras também valorizam. Elas se tornam essenciais, como as paredes de um prédio."

Parece ser um enlace perfeito, quando não aliança perversa, entre empreiteiras e a indústria da arte que encontrou em Miami o solo mais fértil do mundo desde que a feira Art Basel Miami Beach, franquia da suíça Art Basel que acontece todo mês de dezembro há 12 anos, deslocou boa parte das verdadeiras fortunas ligadas à arte para o então decadente balneário.

"Pluto e Proserpina", a versão de Jeff Koons em aço inoxidável dourado de mais de três metros de altura para um clássico do escultor barroco italiano Lorenzo Bernini, vai adornar o saguão principal do novo condomínio. Isso depois de ter passado pela retrospectiva de Koons no Museu Whitney, em Nova York, e ter viajado mais tarde ao Centro Pompidou, em Paris.

O último destino da peça comprada por Costantini por US$ 18 milhões antes de virar decoração de seu prédio será uma aparição estratégica na Art Basel Miami Beach em dezembro deste ano, concluindo uma turnê de exposição e consequente valorização.

Além de Koons, obras de outros artistas vão adornar o prédio, um investimento de US$ 15 milhões, já que, como diz o corretor Ernesto Corti, "você não pode pôr um Koons ao lado de um Zé Ninguém".

CARTOLA

Quarenta quadras ao sul do novo condomínio, o empresário argentino Alan Faena, uma estranha figura sempre de echarpe e cartola brancas, domina sua parte de Miami Beach, próxima do centro de convenções ocupado pela feira.

São sete quarteirões disputadíssimos, onde saem do papel um centro cultural desenhado pelo arquiteto holandês Rem Koolhaas, uma torre de apartamentos assinada pelo britânico Norman Foster e renovações de velhas joias "art déco" de Miami que foram viradas do avesso para atrair moradores bilionários.

Nesse sentido, grifes de vencedores do prêmio Pritzker, o Nobel da arquitetura, como Koolhaas e Foster, e de queridinhos de Hollywood, como o diretor Baz Luhrmann, de "Moulin Rouge" e "O Grande Gatsby", são essenciais. Luhrmann e sua mulher, a oscarizadíssima figurinista Catherine Martin, assinam a decoração de um dos hotéis de Faena em seu enclave americano.

"É um prédio dos anos 1940 que está sendo reformado, com aquele ar da velha Hollywood", diz Benjamin Sinclair, um dos diretores do bairro de Faena, sobre a torre decorada por Luhrmann. "A cobertura custa US$ 55 milhões."

Mas não teria esse preço sem o apelo gentrificador da arte contemporânea. "O centro cultural é o coração do distrito", diz Zoe Lukov, responsável pelas exposições das propriedades de Faena, durante um passeio pelo canteiro de obras em Miami, aonde convidados chegam de Rolls Royce com chofer bancados pelo empresário.

"É como olhar dentro da mente dele e do Rem Koolhaas, um gabinete de curiosidades." De fato, o projeto de Koolhaas para o que Faena chama de seu fórum de ideias em Miami lembra um volume brutalista por fora, mas é cheio de volutas arquitetônicas por dentro, uma espécie de materialização em concreto das sinapses de um cérebro.

Todas as mentes em Miami, aliás, parecem ter um pensamento fixo. Tentam agregar a preços de imóveis o valor intangível de obras de arte, que alcançam milhões de dólares em leilões mesmo que à custa de mecanismos obscuros da indústria da arte.

Na base de tudo, está o mercado de luxo e a forma como desde marcas de champanhe a fabricantes de automóveis como BMW e Rolls Royce enxergam em Miami, em especial na época da feira Art Basel Miami Beach, uma mina de ouro.

"Nós pedimos para trazerem a Art Basel para cá", lembra Irma Braman, diretora do Instituto de Arte Contemporânea de Miami e uma das colecionadoras mais poderosas do balneário. De sua casa cheia de peças de Calder, Picasso e Giacometti, numa ilha particular com vista para um mar azul de golfinhos saltitantes, ela lembra como a chegada da feira suíça mudou a realidade financeira local.

Dias antes, vestindo um tailleur e com laquê ultrapotente nos cabelos, capaz de resistir à brisa quase tufão de Miami, Braman discursava na inauguração da nova sede de seu museu no chamado Design District, criação do empresário americano Craig Robins para revitalizar o centro da cidade.

Num investimento de US$ 2 bilhões, Robins comprou dez quarteirões numa área deteriorada e escalou grifes e arquitetos de grife para ocupar a região. Ao lado de um prédio de vidro do japonês Sou Fujimoto e esculturas póstumas de Buckminster Fuller, ele dizia que é isso que torna Miami "tão mágica".

Entre as lojas de marcas como Gucci, Dior, Prada e Cartier, carrinhos de golfe circulavam levando seus convidados. Artistas como os americanos Theaster Gates e John Baldessari, além de arquitetos como a iraquiana Zaha Hadid, estão todos envolvidos na empreitada, criando instalações ao ar livre para acompanhar as novas lojas.

"Estamos transformando Miami numa capital da arte", diz Robins. "São esses manifestos arquitetônicos e artísticos que vão impulsionar os novos bairros da cidade."

Marc Spiegler, diretor da Art Basel Miami Beach, estava sentado na primeira fila da entrevista coletiva para anunciar os próximos 20 prédios do Design District. "A feira traz muita gente para Miami, artistas e galeristas, mas dura só uma semana", diz Spiegler. "Então é importante que a cidade tenha uma vida cultural estruturada. Acho ótimo que a cultura seja capaz de orientar o desenvolvimento."

Nas palavras de Tomás Regalado, o prefeito de Miami, os museus e centros culturais erguidos a reboque de condomínios e lojas de luxo são a "cereja no bolo" de um processo de valorização exponencial. "Antes aqui era noite, agora é dia", diz Regalado, sobre a região onde surgiu o novo distrito dedicado ao design. "Era uma área degradada, mas agora as pessoas passaram a acreditar em Miami."

SILAS MARTÍ, 30, é repórter da Folha.


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