Folha de S. Paulo


Legalista, general Pery Bevilacqua dá, em 1976, sua versão do golpe

RESUMO Em 1976, o jornalista Inimá Simões, acompanhado de Maria Rita Kehl, entrevistou o general Pery Bevilacqua, um legalista cassado pelo AI-5. A psicanalista, que foi da Comissão Nacional da Verdade, recupera neste texto o depoimento, que permaneceu inédito, no qual o militar narra sua visão do golpe de 1964.

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Pery Constant Bevilacqua foi um dos generais que se opuseram ao golpe militar de 1964 e, mais tarde, em 1968, ao Ato Institucional n. 5. Em consequência de suas posições políticas, sempre do lado da legalidade, foi cassado logo depois do AI-5 -pouco tempo antes de obter sua aposentadoria.

Bevilacqua era avô de minha prima de segundo grau, mas durante as férias de adolescência no Rio de Janeiro eu desconhecia seu papel na história recente do país.

Em janeiro de 1976, Inimá Simões e eu fizemos uma viagem ao Rio. Éramos colaboradores do Jornal "Movimento", tabloide de oposição ao governo militar. Ao saber da minha facilidade de acesso ao general, Inimá propôs uma entrevista. Bevilacqua, aos 76, estava disponível, lúcido e ainda indignado com os rumos que o Brasil tomara. Homem das antigas, nunca deixou de chamar o golpe de "revolução". Nem de lutar para que a legalidade se instaurasse tão logo os militares tivessem cumprido seu papel de livrar o país do que considerava o "perigo comunista".

No momento em que alguns políticos e militares colaboram para criar um clima golpista entre os civis descontentes, consideramos a importância de publicar o depoimento -que permaneceu inédito- de um militar de direita, anticomunista convicto, mas ao mesmo tempo um legalista rigoroso que sempre esteve alinhado com os princípios da democracia.

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O sr. foi central nos episódios que tornaram possível a posse de João Goulart depois da renúncia do Presidente Janio Quadros.
Pery Bevilacqua- Minha ida para São Paulo seguiu-se àquela crise deflagrada quando os três ministros militares do governo de Jânio Quadros, depois da renúncia dele em agosto de 1961, pretenderam vetar a ascensão do vice, João Goulart. De acordo com a Constituição, na falta do presidente, o vice deveria assumir, pois fora eleito conjuntamente para exercer o mandato. Nessa época eu servia no 3º Exército [hoje Comando Militar do Sul], era comandante da 3ª Divisão de Infantaria, sediada em Santa Maria, uma unidade forte.

O Rio Grande se tornou o foco de resistência à pretensão dos ministros militares...
Antes do meio-dia do dia 25 de agosto de 1961, a 3ª Divisão de Infantaria, que eu comandava, entrou em rigorosa prontidão por ordem do general José Machado Dias Lopes, comandante do 3° Exército. Depois de estabelecer contato com as minhas unidades subordinadas, em Cachoeira, Santa Cruz e Pelotas, enviei um rádio ao comandante dando conta de minha posição em favor da solução constitucional. No dia seguinte, a imprensa gaúcha publicou o manifesto à nação em que as Forças Armadas vetavam a posse do doutor João Goulart e ainda ameaçavam detê-lo no momento em que pisasse em território nacional.

O general Dias Lopes tinha posição firme no sentido de agir dentro da Constituição, e se anunciava um confronto, uma guerra civil.

A coesão do 3º Exército contribuiu decisivamente para a solução da grave crise político-militar, sem que fosse necessário chegar à guerra fratricida; o doutor João Goulart pôde enfim tomar posse no dia 7 de setembro de 1961 depois que uma mudança constitucional estabeleceu o regime parlamentarista. Antes da posse ele me telefonou de Porto Alegre e manifestou sua gratidão pela defesa da Constituição e do direito de autodeterminação do povo brasileiro.

Folhapress
Bevilacqua chega a São Paulo, em 1963; a foto, do arquivo da
Bevilacqua chega a São Paulo, em 1963; a foto, do arquivo da "Última Hora", preserva as indicações características de corte, da era pré-digital da fotografia e da diagramação

O sr. foi destacado para comandar o 2º Exército [hoje Comando Militar do Sudeste], em São Paulo, e nesta posição participou de vários fatos que antecederam o movimento militar de março de 1964...
Eu não admitia greve ilegal, greve política. E desde o segundo dia em que cheguei a São Paulo comecei a luta contra essa gente. Tive logo que enfrentar a greve de pressão sobre o Congresso para marcar a data do plebiscito para a volta do regime presidencial que, afinal, foi realizado no início de 1963, com a vitória do presidencialismo. Mas voltando à minha chegada: naquele momento começou a greve dos transportes ferroviários em direção ao porto de Santos. Convidei os sindicalistas para uma conversa amistosa no quartel general do 2º Exército. Formamos uma roda, fiz servir cafezinho e disse a eles que haviam tomado uma atitude que desprestigiava o presidente da República, já que ele havia feito um apelo para que todos os operários se mantivessem dentro da ordem e da lei, e aquela greve era política, ilegal.

Aí eles me disseram: "General, nós não podemos atender seu apelo porque a ordem veio do Rio, a ordem é da CGT, foi o Dante Pellacani que transmitiu". Eu disse: "Ora, essa é boa, então os senhores admitem que um elemento estranho ao sindicato esteja dando ordens, e os senhores estão cumprindo ordens de um elemento estranho ao sindicato!". Eles foram embora e eu telefonei para o comandante do 1º Exército [atual Comando Militar do Leste], General Osvino Ferreira Alves, meu amigo. Contei o que tinha ouvido e pedi o favor de chamar esse homem [o Dante Pellacani] e dar ordem a ele para acabar com a greve em São Paulo. Osvino foi ao encontro do presidente, conversaram sobre o assunto e a greve terminou no mesmo dia.

Eu me choquei, portanto, com a CGT, a poderosa Confederação Geral dos Trabalhadores, que promovia greves que desestabilizavam o país. Mas vamos aos fatos.

Houve uma revolta dos sargentos em Brasília e ela tinha ramificações extensas e profundas em outras áreas do país, sobretudo em São Paulo, onde se encontrava o cabeça da revolta, um sargento chamado Aimoré Zoch Cavalheiro, que eu já conhecia desde Porto Alegre. Ele havia sido eleito deputado pelo RS, mas não foi diplomado, uma vez que a Constituição não permitia que praças fossem votados. O Tribunal Regional Eleitoral negou o diploma. Ele recorreu, mas o Supremo Tribunal Federal confirmou a impossibilidade. No dia 12 de setembro de 1963 explodiu a revolta dos sargentos em Brasília. Prenderam até ministro do Supremo, houve tiroteio, sangue.

Eu recebi um telefonema e consegui que a imprensa não divulgasse o manifesto do sargento Aimoré Cavalheiro, que tinha tanta confiança no sucesso da revolta que levou pessoalmente aos jornais o texto com sua assinatura embaixo. Eu mandei prender o sargento. No manifesto, a tônica era a humilhação. Queriam impor o reconhecimento do direito de serem eleitos. Os sargentos se sentiam humilhados. As esposas podiam se candidatar, mas o chefe da família não podia -era humilhado em seu próprio lar. Diziam no texto que o presidente Goulart, diante do governador Brizola, no Palácio Piratini em Porto Alegre, havia assegurado, sob sua palavra de honra, que a questão da elegibilidade dos sargentos seria resolvida favoravelmente e que nesse mesmo sentido ele tinha a palavra do presidente do STF -"será que a palavra honra mudou de significado?", estava no texto. E mais adiante: "Um ladrão qualquer como Moisés Lupion [governador do Paraná e posteriormente senador] podia ser eleito, um sargento não pode!" Eu senti que a tônica era a humilhação, e emiti uma nota de instrução para um esclarecimento aos meus comandados e à população. Eu dizia na nota que "os ministros do STF, como de resto os demais ministros, não podem ser votados, mas podem votar e não se sentem humilhados por isto. "

O que era humilhante, dizia eu, era o conúbio entre os sargentos e estes órgãos ilegais e espúrios: a CGT, PUA [Pacto de Unidade de Ação], Fórum Sindical de Debates, verdadeiros serpentários de peçonhentos inimigos da democracia. Eu estava pronto para esmagar o movimento deles, pois estavam conspirando com o pessoal operário. Foram presos três sargentos, o presidente e o tesoureiro do sindicato dos metalúrgicos, em cujo automóvel foram apreendidos boletins subversivos. Eles estavam articulando uma greve geral a começar pela Baixada Santista em apoio aos sargentos.

Publiquei a nota nos jornais e deu certo. Soube que ocorreu uma reunião no Campo de Marte com mais ou menos 60 sargentos e houve por parte deles a compreensão de que eu tinha pelo menos um pouco de razão nos meus argumentos. E nunca ninguém tinha falado com eles dessa maneira.

Foi nesta ocasião que o sr. se indispôs com o Ministro da Guerra [hoje Comandante do Exército]?
A imprensa começou a divulgar que eu ia ser destituído do comando, ser chamado ao Rio e ficar preso. O general Costa e Silva me contou que o ministro o havia convidado para me substituir e ele respondeu: "Estou pronto para cumprir suas ordens, mas acho que você não deve tirar o Pery do comando; e, se o fizer, você também não vai aguentar muito tempo aí, porque a CGT vai tirá-lo do seu cargo. Quinze generais estiveram na minha sala e se declararam solidários com os termos da nota, assim como eu, tanto que o meu primeiro ato no comando em São Paulo será reeditar a nota do general Pery". Foi o que ele me disse. Em meio aos boatos chamei os generais meus subordinados e disse a eles que minha ideia, antes de passar o comando, era meter na cadeia todos os integrantes da CGT, PUA, do Fórum Sindical de Debates, e exigir que fizessem o mesmo no Rio. Recebi muita solidariedade.

O governador Adhemar de Barros ofereceu a Força Pública [hoje Polícia Militar] para me apoiar. O senador Auro Soares de Moura Andrade disse que eu teria a cobertura do Congresso Nacional e até me falaram que houve um movimento dos líderes dos partidos no sentido de votar o impeachment do presidente. Me elegeriam para completar o mandato. Felizmente não houve nada disso, pois o governo recuou em tempo. Quando me encontrei com o ministro, general Jair Dantas Ribeiro, senti que ele estava muito irritado comigo, dizendo que eu estava fazendo política nos quartéis.

Expliquei que havia resolvido o levante com a prisão de nove sargentos, distribuídos em vários quartéis, sem precisar maior uso da força. Depois de muita conversa fui ao Palácio das Laranjeiras, onde o presidente João Goulart estava me esperando. Eu disse a ele: "Senhor presidente, eu sei que não sou insubstituível no comando, mas minha saída de São Paulo neste momento seria a vitória desta gente da CGT. Seria o arrasamento do princípio da autoridade. Se a CGT puder pôr para fora um general do comando de sua unidade, nem o presidente da República teria mais autoridade no país".

Aí ele me disse: "General Pery, o senhor permanecerá no comando do 2º Exército enquanto o senhor desejar. Eu tenho amizade pelo senhor, eu tenho admiração pelo senhor e devo gratidão ao senhor. Se eu estou neste lugar, eu devo ao senhor, pela sua ação no 3º Exército, na crise da renúncia do presidente Jânio. O senhor é um homem puro, sem malícia, eu sou político há 20 anos. O senhor está sendo envolvido. A oposição se aproveita das suas palavras para fazer ataques ao governo e o poder econômico também se apoia nas suas atitudes para negar, com intransigência, reivindicações justas dos trabalhadores."

Mas o presidente não manteve a promessa de mantê-lo no cargo, e o sr. se tornou um general sem tropa.
Dois meses depois ele se esqueceu do compromisso e me transferiu para a chefia do EMFA (Estado-Maior das Forças Armadas); fiquei sabendo que a exoneração fora por pressão da CGT. E a situação política foi evoluindo neste padrão. Meses depois, me lembro bem do dia, 28 de março de 1964, aqui mesmo nesta casa [que ficava ao lado do famoso bar Antonio's, no Leblon] recebi a visita do Castelo [general Castelo Branco] e do brigadeiro Melo, que era chefe do Estado-Maior da Aeronáutica. Conversamos bastante, e o Castelo deixou em minhas mãos um exemplar do ofício reservado que havia mandado aos generais subordinados a ele (eu não era subordinado porque era chefe do EMFA).

Era um sábado e ambos respeitaram a situação delicada em que me encontrava, porque exercia um cargo de confiança do presidente da República. Eu não conspirei. Agora eu desconfiava -eu não dormia de touca- de que o Castelo conspirava.

A reação militar era inevitável?
Naquela ocasião conversamos sobre a delicada situação do país, mergulhado que estava numa crise cujas consequências eram fáceis de prever: para quem conhecia muito bem o Exército, como eu, era muito fácil prever os desdobramentos. Era fácil prever o que iria acontecer se o presidente não reconsiderasse sua orientação, porque nós estávamos diante de uma ameaça clara. A ameaça de uma república popular sindicalista que poderia levar ao comunismo, pois os elementos que manejavam a CGT, que exploravam os sindicatos, eram comunistas. No dia 30 de março de 1964, uma segunda-feira, houve uma reunião por mim convocada no EMFA e lá estavam os chefes do Estado Maior do Exército e da Aeronáutica e a Marinha, representada pelo almirante Armando Zenha de Figueiredo. Fiz a minha exposição de motivos, admitindo ser ainda possível restabelecer a autoridade do presidente da República sobre as Forças Armadas mediante três condições: 1) Uma declaração formal de que não admitiria a greve geral anunciada pela CGT, e que iria intervir nos sindicatos que desobedecessem à lei e aplicar-lhes sanções penais competentes. 2) O compromisso de governar com os partidos e não com os sindicatos. 3) Apoiar-se exclusivamente nas Forças Armadas, abrindo a estas um amplo crédito de confiança na sua lealdade e na honra militar dos seus integrantes.

Eu tinha boas intenções, mas não tinha força, e assim pedia a opinião deles sobre se devia ou não tentar essa solução. Castelo Branco foi de opinião que eu devia pedir a audiência com o presidente, "que poderá dar resultado". "Oxalá dê certo" disse ele, "seria uma prova de lealdade do chefe do EMFA com o Comandante Supremo das Forças Armadas". Mas à noite houve uma homenagem dos sargentos ao presidente, no Automóvel Clube, que teve péssima repercussão nas Forças Armadas. A homenagem culminou com o Ministro da Justiça, Abelardo Jurema, abraçando o cabo Anselmo, personificação da indisciplina e da rebeldia! Foi isso, aliás, que levou o Mourão a tomar sua decisão naquela noite.

O sr. esteve com o presidente João Goulart no dia 31 de março de 1964. O que conversaram?
Cheguei ao Palácio das Laranjeiras, ele estava com o senador Juscelino Kubitschek. Iniciamos nossa conversa e eu lhe falei das três condições. O presidente me respondeu: "General Pery, minha renúncia não resolve a situação, não poderá evitar efusão de sangue porque o Mazzili [presidente da Câmara e primeiro na sucessão do presidente] não tem condições para isso". Eu disse: "Mas vossa excelência tem, presidente". Eu não tinha falado em renúncia e reafirmei as sugestões apresentadas, argumentei com ele, mas ele estava irredutível. Citei o exemplo do comício de 13 de março, que fora sugerido ao professor Santiago Dantas, coordenador político da presidência, por Luiz Carlos Prestes. Prestes havia declarado em discurso na Associação Brasileira de Imprensa, no aniversário da fundação do jornal "Novos Rumos", que foi ele quem sugeriu o comício para maior contato de João Goulart com as massas. Disse ao presidente, que ele dera muito prestígio à CGT, órgão ilegal e dominado por comunistas. Ele me perguntou: "General Pery, o senhor acha que eu sou comunista?". "Não, vossa excelência não é comunista, vossa excelência é companheiro de viagem dos comunistas", contestei.

Ele me disse em seguida: "No comício havia 200 mil pessoas do povo!". Eu disse: "Vossa excelência chama aquilo de povo? Aquilo não era povo! Eram operários enquadrados pelos sindicatos e conduzidos para o local do comício. De São Paulo vieram dois trens: um de 15 outro de 17 vagões, cheios de operários trazidos por aquele petiço comunista, o Luiz Tenório de Lima". O presidente deu uma gostosa gargalhada ao ouvir a expressão "petiço comunista". Acho que foi a última vez que riu como presidente da República.

Num dado momento da conversa, o Ministro da Justiça, Abelardo Jurema, entregou um papel ao presidente em que era citado um manifesto do general Mourão [Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Divisão de Infantaria] exigindo a sua renúncia. Na ocasião eu lhe forneci dados para que ele me pedisse para falar com o Mourão, que era meu amigo. Mas não pediu nada. No dia seguinte, viajou para Brasília e depois para Porto Alegre e São Borja, de onde partiu para o Uruguai.

O que se fala correntemente é do apoio americano ao golpe na forma de navios que estariam prontos para intervir. Fala-se também da participação do Ibad [Instituto Brasileiro de Ação Democrática]financiando candidaturas anticomunistas. Parece que estava tudo previamente articulado.
Os navios eram apenas de petróleo, para o caso de faltar combustível no país.

Mas fica a dúvida se o papel dos militares não foi o de inocentes úteis...
Eu desconhecia totalmente essas coisas. Vim saber recentemente [1976], através das declarações de Lincoln Gordon. Acho que o Mourão não sabia nada disso também. O movimento chefiado por ele não tinha nenhuma ligação com o estrangeiro. Mas quero concluir dizendo que meu desejo era evitar a deposição do presidente João Goulart porque sei, por observação dos fatos, por experiência, que as revoluções políticas quando vitoriosas cumprem a princípio alguns de seus compromissos imediatos, mas depois se desviam, degeneram e praticam os mesmos erros -muitas vezes agravados- de que acusavam os adversários.

Retornando à história do golpe. Eu contei a vocês que no dia 31 de março minha intenção era evitar o pior. À noite recebi um telefonema do senador JK. Ele me contou que tinha ido à tarde sugerir ao presidente a substituição do ministério para solucionar a crise, mas o presidente não aceitou a sugestão. Disse que já era tarde, que o Mourão já havia se levantado e pareceria covardia. Juscelino pretendia insistir na sua sugestão depois de consultar alguns generais. Dei todo o meu apoio ao ex-presidente JK, cuja sugestão levada ao presidente João Goulart se somava perfeitamente com as que eu lhe havia apresentado.

Tempos depois, já nomeado pelo presidente Castelo Branco como ministro do STM, encontrei o Mourão e contei o que havia feito par evitar a deposição de João Goulart e do esforço de JK de substituir todo o ministério. Mourão exclamou: "Ah, bem, então a questão estaria resolvida". E disse em seguida, talvez por gentileza por ser muito meu amigo: "Nem precisaria tudo isso Pery. Bastaria que o Jango te houvesse nomeado Ministro da Guerra". Tinha razão. Eu teria feito o Mourão desistir, por telefone! Dizendo simplesmente que o doutor Goulart aceitaria minhas sugestões. Diria a ele: "Volta pra casa, Mourão, vai dormir feliz, o assunto está liquidado".

Como surgiu a sua preocupação com a anistia?
Em 1974, assistindo à campanha eleitoral dos candidatos ao Estado da Guanabara, eu percebi que nenhum deles tocava no assunto levantado por Sua Santidade, o papa Paulo 6º, que havia pedido a anistia para todos os presos políticos do mundo a fim de preparar o advento do Ano Santo que iria ser aberto em 25 de dezembro. Então escrevi cartas sobre o assunto ao "Jornal do Brasil" e à "Tribuna da Imprensa". No primeiro, não sei por que, não publicaram, mas na "Tribuna" chegaram a fazer a composição tipográfica. Eles iam publicar na íntegra, mas a censura não deixou publicar e ainda levou os originais. Nessa carta procurei demonstrar que para mim o problema político número 1 do Brasil é a anistia ampla. Eu me considero com autoridade moral para propugnar por tal medida e concitar os futuros representantes do povo a se comprometerem publicamente com ela, porque na minha idade, 76, não poderei mais ser reconduzido à cadeira que ocupava no Egrégio Superior Tribunal Militar do qual fui alijado pelo AI-5.

O AI-5 foi um grande erro político...
Li noutro dia um artigo sobre a "exportação de cérebros", revelando os graves prejuízos para o país com o afastamento sumário de professores, cientistas e pesquisadores. E isso só poderá ser corrigido com a anistia.
Além disso, há um fato que parece inacreditável, mas que é a pura verdade, sem contestação possível: é o fato de que uma das maiores vítimas do AI-5 foi por este alcançada supostamente no interesse da revolução, justamente por haver, com sua ação pessoal, corajosa e eficiente, evitado que ela -a revolução- se comprometesse irremediavelmente e se afogasse na ignomínia de um hediondo crime de sangue e destruição, planejado por um cérebro enfermo. Numerosas pessoas têm conhecimento disso. Estou falando sobre o capitão Sergio Ribeiro Miranda de Carvalho [Sergio Macaco], da Aeronáutica. E de sua atuação decisiva para evitar a ação criminosa planejada pelo grupo do Parasar, [órgão da aeronáutica criado para resgatar sobreviventes de desastres].

A ideia do comandante militar, a quem o sr. se refere como "cérebro enfermo", era de provocar o caos e culpar os comunistas?
O capitão Sergio evitou que o Parasar se transformasse num esquadrão da morte. Evitou que se promovesse a explosão do Gasômetro do Rio na hora do rush para matar muita gente, assim como a destruição simultânea das instalações em Ribeirão das Lages, para que o povo carioca ficasse sem luz, sem transportes... de modo a criar um clima de indignação contra os comunistas.

A intenção era a de que a catástrofe provocada intencionalmente em nome dos "comunistas" criasse um clima favorável para a eliminação física de muita gente. Bastaria esse único caso, da cassação do herói que denunciou o plano criminoso e impediu que as bombas explodissem, para justificar a urgência da anistia, reparadora de um imenso acervo de injustiças.

Paradoxalmente, este verdadeiro herói e mártir, gozando de elevadíssimo conceito em sua classe e da gratidão cívica de todos os compatriotas, foi punido com a aplicação do AI-5, justamente por seu ato benemérito.

O senhor poderia nos resumir qual seria sua profissão de fé política?
O AI-5 foi o maior erro jamais cometido em nosso país e comprometeu os ideais do movimento de 31 de março. Os fatos a que nos referimos levam à conclusão de que será sempre preferível suportar um mau governo a fazer uma boa revolução. A terapêutica revolucionária agrava os males do doente -a democracia- quando não o mata. Mais de três quartos de século de vida me permitem essa conclusão definitiva. A rigor, a última revolução política no Brasil deveria ter sido a de 15 de novembro de 1889: "A República está fundada, o resto virá depois". Assim se expressou Benjamin Constant, seu fundador. Somente a prática do regime poderá aperfeiçoá-lo.

MARIA RITA KEHL, 62, é psicanalista e escritora, autora de "O Tempo e o Cão - A Atualidade das Depressões" (Boitempo). Integrou da Comissão Nacional da Verdade.

INIMÁ SIMÕES, 64, é jornalista e escritor, autor de, entre outros, "A Nossa TV Brasileira" (Senac).


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