Folha de S. Paulo


David Hockney: "Quando trabalho me sinto com 30"

RESUMO No ano passado David Hockney deixou Yorkshire, na Inglaterra, após acontecimentos traumáticos em sua vida pessoal na região, e voltou para sua casa em Hollywood Hills. O artista britânico, 77, fala de como a Califórnia o remoçou e responde a perguntas de leitores do "Observer" e de personalidades do mundo cultural.

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David Hockney quer contar uma piada. Um homem vai ao médico e diz que pretende viver pelo máximo possível de tempo. O que fazer? O médico pede que ele redija uma lista de seus vícios e então lhe diz: "Muito bem, quero que você abandone o cigarro, deixe de beber, abra mão da alimentação gordurosa e desista do sexo". O homem fica chocado e fala em voz baixa: "Ok. Desse jeito vou ter vida mais longa?". O médico responde: "Não, mas será essa a sensação".

Como se estivesse ouvindo a piada pela primeira vez, Hockney, 77 anos, solta uma gargalhada que mais parece um uivo, terminando num urro rouco e num chiado de fumante. Estamos em duas poltronas respingadas de tinta no estúdio, que é um anexo à casa do artista em Hollywood Hills. Hockney passa a maior parte de seus dias aqui. O lugar tem tudo de que ele precisa, incluindo alguns galões de água mineral e um estoque de 2.000 cigarros Camel Wides, para a eventualidade de um terremoto atingir Los Angeles.

Ao chegar à casa, depois de subir por ruas tortuosas saindo de Sunset Boulevard, desviando de caminhões de lixo que desciam em alta velocidade no sentido oposto, foi impossível não ser dominado por uma sensação de "déjà vu". Muito antes do Google Earth, Hockney pintou essas colinas em tons absurdos de laranja, verde, azul e vermelho, em paisagens como "Mulholland Drive: The Road to the Studio, 1980". Agora que estou aqui, algo que eu pensava ser uma fantasia hiper-realista em tinta acrílica revela-se surpreendentemente realista -mais um exemplo do dom de Hockney para captar alguma essência de qualquer lugar ou pessoa que pinta.

A casa, comprada no final da década de 1970, se esconde atrás de portões cinzas, que não deixam transparecer o "país das maravilhas" que escondem. Passando por eles, o terreno desce, numa selva de exóticas samambaias e palmeiras, até a famosa piscina na parte mais baixa. O sol inclemente faz faiscarem tons iridescentes de rosa e cerúleo. O artista Howard Hodgkin disse certa vez que a casa era "tão romântica e artificial" quanto ele esperava -e é. Mas, hoje, tudo está calmo, e as folhas que boiam sobre a piscina traem seu uso apenas esporádico. Talvez faça tempo desde que festas tresloucadas varavam a noite e pessoas se deitavam nuas sobre as pedras quentes à beira da água.

Foto Karime Xavier/Folhapress

"Não saio de casa. Quase nunca saio daqui", Hockney admite. Contrastando com os trabalhos vibrantes que o cercam, sua aparência é tão sóbria quanto é sóbrio o portão da casa: calças risca de giz cinzentas, casaco cinza escuro e, inesperadamente, considerando o desdém com que ele encara qualquer forma de exercício, tênis Skechers. "Vou ao dentista, ao médico, à livraria e à loja de maconha, porque a cada um desses lugares é preciso ir pessoalmente. E é só. Não saio muito, na verdade, porque estou surdo demais. Estou ouvindo você agora, mas se houvesse duas pessoas conversando em voz baixa eu não conseguiria ouvir, porque ouço tudo em um ruído só. Por isso não tenho propriamente uma vida social, porque a vida social é conversar e ouvir, e não consigo ouvir realmente. Mas está tudo bem, tenho um monte de coisas para fazer, estou bem."

Você é freguês regular da loja de maconha? "Bem, sou..." ele começa a responder, tirando a carteira do bolso de trás para mostrar seu cartão de "paciente de maconha medicinal", como se estivesse sendo revistado pela polícia. "Para conseguir esse cartão só é preciso falar 'tenho dor nas costas, ansiedade ou alguma coisa', e pronto. E é ótimo, na verdade. Não fumo muito, mas, como não tomo mais álcool, um pouco de maconha à noite às vezes é agradável."
Hockney voltou para Los Angeles no verão de 2013, depois de oito anos na Inglaterra, a maior parte do tempo em Bridlington, na parte leste de Yorkshire. Foi um período produtivo, em que ele ampliou seus horizontes técnicos e tecnológicos. Sua produção foi surpreendente para um artista de qualquer idade: desde milhares de pequenos desenhos em seu iPhone e iPad até enormes paisagens da região de Yorkshire Wolds (notadamente "Bigger Trees Near Warter", de 12,2 metros por 4,6 metros), culminando numa exposição triunfal na Royal Academy, em 2012. Mais de 600 mil pessoas viram "David Hockney: A Bigger Picture", o dobro do número previsto de visitantes -e esse público se repetiu quando a mostra viajou para Bilbao e Colônia.

Mas sua saída de Yorkshire foi repentina -até insatisfatória. Não parecia ser a hora da despedida; problemas pessoais se impuseram. Em setembro de 2012, Hockney sofreu um AVC. Num primeiro momento ele não se deu conta do que tinha acontecido. Levantou-se cedo e saiu para comprar o jornal, mas então percebeu que não conseguia dizer frases completas. Depois, em março do ano passado, um de seus assistentes de estúdio, Dominic Elliott, de 23 anos, morreu na casa do artista, em Bridlington, após ingerir um produto de limpeza doméstica, sob efeito de ecstasy e cocaína. Por fim, a surdez de Hockney, que é hereditária e o obriga a usar aparelhos nos dois ouvidos, piorou.

O retorno a Hollywood Hills, onde ele viveu durante boa parte dos anos 1980 e 1990, tem sido um tanto catártico, ele acredita. Antes de deixar a Inglaterra, estava trabalhando sobre paisagens sombrias em Yorkshire, desenhadas a carvão, mas, na Califórnia, decidiu outra vez usar tintas acrílicas ousadas e fazer alguns retratos. O primeiro foi de Jean-Pierre Gonçalves de Lima, seu assistente principal, sentado numa cadeira com a cabeça apoiada nas mãos.

"Comecei essa pintura de JP", diz. "Nos sentíamos muito caídos, muito mesmo. Estávamos deprimidos por causa do que aconteceu na Inglaterra e tínhamos acabado de voltar. Tinha outras coisas acontecendo, mas comecei a fazer esses retratos, e só foi preciso isso. Pintei 50 pessoas, todas na mesma cadeira, na mesma posição. Levou três dias cada uma, mais ou menos três sessões de seis horas, e eu curti fazer isso. Chamei pessoas para virem sentar-se ali e falei: É uma exposição de 18 horas."

Desde então, Hockney não parou mais. Ele continua a mexer com tecnologia para produzir trabalhos novos. ("Trabalho oito dias por semana", diz Gonçalves de Lima, fingindo estar exasperado. "Todo dia é segunda-feira.") Ele completou recentemente um conjunto de cinco "desenhos" fotográficos: montagens em diferentes perspectivas de pessoas distribuídas por seu estúdio, exibidas em telas de alta definição. Esses trabalhos estão expostos na Pace Gallery, em Nova York, onde ficarão até 10 de janeiro, juntamente com alguns dos retratos na cadeira e pinturas de grupos de bailarinos -uma homenagem a "A Dança", de Henri Matisse.

Quando nos encontramos, Hockney acabava de começar uma série de estudos mais convencionais de jogadores de baralho. Com os olhos azuis cintilando, ele diz que agora entende o que atraiu Cézanne e Caravaggio para o mesmo tema. "Os jogadores ficam razoavelmente parados, suas mãos estão sobre a mesa, eles estão concentrados, eles me ignoram, mas mesmo assim me sinto próximo deles."

Hockney está determinado a olhar para o futuro, mas nós ganhamos uma oportunidade preciosa para uma incursão retrospectiva em sua vida com o lançamento do documentário que leva seu nome, que estreou no mês passado e será exibido pela BBC2 ano que vem.

Hockney acende um Camel Wide -agora só restam 1.999 no estoque- e se prepara para responder perguntas de outros artistas, amigos e leitores do "Observer".

ARTISTAS PERGUNTAM

Grayson Perry (artista visual) - Tenho a sensação de que, à medida que vou ficando mais velho, quero fazer arte cada vez mais feliz. O que você acha, David?
David Hockney - É uma boa pergunta. Bom, minha arte é brincalhona, ela tem muito disso. Não sei se ela é feliz, mas acho que não é infeliz. O estado de ânimo em que você está sempre transparece em seu trabalho. Na verdade, se estou muito deprimido e infeliz, eu nem trabalho. Isso não acontece com muita frequência. Geralmente eu trabalho sete dias por semana. Hoje em dia, o trabalho é a única coisa que eu faço. Estou com, deixe eu ver, 77 anos, e sinto que ainda estou apenas explorando coisas. Neste momento, estou explorando a perspectiva de maneira nova. Isso é interessante para mim.

Foto Karime Xavier/Folhapress

Não sou um artista deprimido. A arte deve transmitir alegria. Ainda não vi a exposição de Matisse [a exposição "Cut-Outs" da Tate que foi levada aos Estados Unidos], pretendo ir na semana que vem quando eu estiver em Nova York, mas estou com muita vontade de ver. Matisse é pura alegria. Jovens e velhos amam isso, não? E acho que minha mostra na Royal Academy foi vista por jovens e velhos, então isso deve ser uma coisa boa.

Ali Smith (escritora) - Como você descreveria o lugar onde as coisas que você já leu e a música que conhece penetram os quadros que você faz? Olho para suas paisagens e de alguma maneira eles me parecem... Beethoven. É uma forma de sinestesia em ação?
Se é sinestesia, não sei. Alguém disse que sou sinestesista devido à cor que usei nas imagens que fiz para o palco de óperas anos atrás, mas acho que não, na realidade. Mas Beethoven... talvez eu estivesse ouvindo Beethoven algumas vezes quando pintei uma paisagem. Eu me lembro de que no carro, a caminho de Woldgate, eu ouvia Glenn Gould tocando ao piano a versão de Franz Liszt da "Quinta Sinfonia" de Beethoven. O carro foi o último lugar onde pude realmente ouvir música, porque era um carro bom, tinha 18 caixas de som.

Bella Freud (estilista) - Como você bolou um jeito tão bom de se vestir? Foi algo pensado com cuidado ou foi um experimento casual que funcionou bem?
Foi por acaso! Não sei, meu pai era um dândi. Ele sempre usava ternos, e eram feitos sob medida. Ele não ganhava muito, mas naquela época as pessoas mandavam fazer seus ternos. Ele os mandava fazer em Bradford, só isso. Hoje eu tenho uns dez ternos e na realidade é só isso que uso. Durante uns 20 anos a Fallan & Harvey em Savile Row fez meus ternos. E eu pinto de terno, então alguns estão mais manchados que outros. Mas é só isso que eu uso.

Quando você é um jovem artista, você quer chamar a atenção. É necessário, mas depois de ter chamado a atenção, está feito. Não penso muito sobre roupa, simplesmente visto alguma coisa. Hoje vesti esta calça mais nova. Bem, é mais nova que as mais velhas.

David Shrigley (artista visual) - Você tem a mesma paixão por fazer arte de quando era mais jovem?
Tenho ainda mais. Estou trabalhando mais hoje do que trabalhava 20 anos atrás, estou produzindo mais. Provavelmente porque tenho mais certeza das coisas. Tenho plena confiança no que estou fazendo. Eu sei que meu trabalho é interessante. Sei disso porque vejo o trabalho de outras pessoas e sei que o meu é diferente. Eu sei que estou um pouco por conta própria. Gosto do seu trabalho. Vi sua exposição na Hayward Gallery. Achei muito, muito boa. Uma exposição memorável.

Paul Smith (estilista) - Você ainda desenha do modo mais tradicional, como fazia inicialmente quando saiu do Royal College?
Sim, eu desenho. Em 2013 fiz uns 30 retratos, desenhos a carvão -bem convencionais, na realidade, mas não tanto assim. Os desenhos me levaram dois dias. Dos 16 aos 20 anos eu só fiz realmente desenhar, porque estava na escola de artes de Bradford e em Bradford você podia ficar na escola das 9h às 21h. Passei quatro anos desenhando. Se você faz isso você melhora, qualquer pessoa melhoraria, mas hoje não são muitas as pessoas que tentam, e é esse o problema. Eu tentei e me aperfeiçoei rapidamente.

Não sei como estão as escolas de arte hoje, mas me disseram que elas não ensinam mais desenho. Isso me parece uma insensatez. O desenho será necessário no futuro. Videogames e outras coisas -são pessoas desenhando. Sempre é preciso voltar à tábua de desenho. Sempre. Mesmo no computador, é preciso voltar à prancheta de desenho.

Yinka Shonibare (artista visual) Desenhar com o iPad lhe dá a mesma sensação que desenhar no papel?
Não, porque você está desenhando numa folha de vidro. Mas num iPad você pode desenhar para sempre, e numa folha de papel isso não é possível. E no iPad você desenha de forma um pouco diferente, mas é só isso.
O desenho existe há 50 mil anos, não é verdade? Acho que ele vem de algum lugar muito profundo em nosso íntimo. Quando aquele pessoal todo nos anos 1970 estava tentando abrir mão do desenho, eu fui ver essas pessoas e elas me disseram: "Agora não é mais preciso desenhar". E eu observei: "Por que vocês não tentam dizer isso àquela criancinha ali? Tentem lhe dizer que ela não precisa desenhar e vejam o que acontece".

LEITORES PERGUNTAM

Se você pudesse dar um jantar para cinco pessoas, vivas ou mortas, quem seriam?
Cinco pessoas: Picasso, Goya, Rembrandt, Michelangelo e um escritor, talvez Goethe, porque sei que ele tinha um papo interessante e porque não sei muito sobre ele.

Eu frequentemente faço uma peregrinação até a galeria Salts Mill, em Saltaire, para ver suas obras e me comovo com a dos últimos momentos de vida de sua mãe. Quando você cria um trabalho profundamente pessoal, como esse, como se sente quando volta para vê-lo alguns meses ou anos mais tarde?
Penso em minha mãe. Penso nela com frequência. Nos últimos dez anos de vida dela eu ia vê-la quatro vezes por ano. Ela viveu até os 99 anos. Eu passava uma semana em Bridlington e a desenhava, sempre. Pensava que talvez aquela fosse a última vez que a veria. E ainda tenho todos aqueles desenhos. A pintura da qual você fala pertence a mim, eu apenas a cedi temporariamente a Saltaire. Guardei todas as pinturas e os desenhos de minha família; só dei uma para a Tate porque a queriam, mas fiquei com muitas. Mais adiante vou dá-las a museus e assim por diante.

Uma das coisas que sempre amei em você e seu trabalho é que você dá a impressão de ser totalmente indiferente às críticas. Essa impressão é verdadeira? Ou alguma crítica já o feriu ou o obrigou a rever seu trabalho?
Não, isso nunca aconteceu. A maioria das críticas não é grande coisa. Se eu prestasse atenção aos críticos, ficaria louco. Nunca dei importância a Brian Sewell; ele me ataca sempre, ataca todos os artistas ingleses contemporâneos, mas na realidade ele é uma piada, só isso. Nunca o levei a sério. Sim, sempre fui capaz de ignorar as críticas. Na realidade, sempre tive muita autoconfiança. Quando cheguei ao Royal College of Art, as pessoas me tratavam com sarcasmo por eu ser de Yorkshire, faziam piadinhas em tom de menosprezo. Eu não dava bola, mas às vezes olhava os desenhos delas e pensava: "Se eu desenhasse assim, ficaria calado". Mas eu nunca me importei, não tinha importância. Quando primeiro fui para Londres, imaginei que todo o mundo ali seria muito, muito bom, mas depois de quinze dias no Royal College eu já tinha formado uma opinião sobre muitas coisas. Podia ver que nem todos eram tão bons assim.

Sempre tive autoconfiança porque eu sabia desenhar. Eu tinha consciência de possuir um talento; tive essa consciência desde menino. Eu pensava: "Se as coisas ficarem difíceis, eu sempre poderia pintar retratos no La Coupole, em Paris". Havia um homenzinho que desenhava retratos, e eu pensava: "Eu também poderia fazer isso". Pensar que você sempre teria a opção de fazer isso ou aquilo lhe dá confiança.

Você sempre foi um homem apaixonado. Agora que está mais velho, qual é o papel do amor em sua vida? Esse papel mudou?
Amo meu trabalho. E acho que o trabalho tem amor, na realidade. Estou morando sozinho. Bem, vivo com JP, mas não somos amantes. Estou aberto à possibilidade do amor romântico, estou sempre aberto! Mas não espero isso agora. Já tive amor suficiente, estou razoavelmente feliz aqui. Não estou infeliz. Estou trabalhando, é só isso que quero fazer, e há amor em minha vida. Amo a vida. É assim que assino cartas: "Amo a vida, David Hockney". Quando estou trabalhando, me sinto como Picasso, me sinto como se tivesse 30 anos. Quando paro, eu sei que não tenho, mas quando pinto, passo seis horas por dia em pé e me sinto com 30 anos, isso mesmo. Picasso disse que entre os 30 e os 90 anos, ele sempre se sentiu com 30 quando pintava.

O que você diz aos não fumantes que falam de seu vício em tom farisaico?
Uma vez eu estava caminhando no Holland Park (estava posando para Lucian Freud) e parei para observar alguns coelhos pretos brincando. Me sentei num banco e então algumas pegas -aves pretas e brancas- pousaram no chão. Eram bonitas. Eu estava sentado lá, fumando um cigarro, e três garotas passaram ao lado correndo. Elas me viram, disseram "ai, ai" [faz um gesto de repreensão com o dedo]. Fiquei sentado e pensei: "Elas acham que são muito saudáveis, mas não viram os coelhos". Pensei: "Sou mais saudável que elas".

As pessoas são mesquinhas, são sim. São mesquinhas e deprimentes: deprimentes! Uso a palavra "deprimente" porque acho muitas pessoas deprimentes, e elas não me interessam. São deprimentes. Deprimentes demais.

Você acha que, com sua arte, mudou a atitude das pessoas em relação à homossexualidade? Se sim, isso é importante para você?
Provavelmente, e isso é uma coisa boa, acho. Sim, quando eu era muito jovem eu já sabia que os gays escondem coisas, e eu não queria fazer isso. Pensei: "Vou ser um artista, simplesmente. Tenho que ser honesto". É preciso ser honesto. Então era isso, eu era gay e isso não me preocupava. E eu sempre dizia que vivíamos na zona boêmia e que ela é um lugar tolerante. Naquela época existia uma zona boêmia. Hoje em dia não existe, porque, para haver uma zona boêmia, é preciso haver lugares que custem pouco, certo? Paris foi uma cidade boêmia no passado, mas hoje não é, é rica demais. Nova York está ficando assim. Acho que não existe muita zona boêmia em Nova York hoje.

Se você pudesse ter uma pintura apenas da história pendurada em seu quarto, qual seria? E, se daqui a 2.000 anos só restassem algumas poucas de suas telas, qual você mais gostaria que durasse?
Há um desenho de Rembrandt que para mim é o maior desenho já feito. Está no British Museum. É de uma família ensinando uma criança a andar, então é uma coisa universal, todo mundo já viveu ou viu isso. Todo mundo. Eu costumava imprimir cópias grandes de desenhos de Rembrandt, eu as dava às pessoas e dizia: "Se vocês encontrarem um desenho melhor, mandem para mim. Mas se vocês encontrarem um melhor, será de Goya ou de Michelangelo, talvez". Mas na realidade acho que não existe nada melhor. É um desenho magnífico, magnífico.

Quanto a uma pintura minha... 2.000 anos! Isso é muito tempo, acho que até lá minhas pinturas não serão mais grande coisa. Mas na realidade eu as pinto para durar, e elas são pintadas corretamente, ou seja, são pintadas "gordo sobre magro" [permitindo que as camadas inferiores sequem, para evitar rachaduras na superfície], então a tinta se projeta. A primeira coisa que fiz quando ganhei dinheiro foi comprar telas e tintas de qualidade melhor, porque sabia que era necessário, e posso olhar aqueles quadros de 50 anos atrás e ainda estão bem. Se eu tivesse que escolher apenas um, escolheria o retrato de meus pais. Mas não sei se ele duraria 2.000 anos. Talvez durasse, mas as pinturas só duram se alguém realmente quer vê-las; se são guardadas em algum depósito, acabam virando pó.

Qual foi a pessoa mais linda que você já beijou?
O artista Peter Schlesinger, talvez. Eu o conheci quando ele tinha 18 anos, e eu, 28. Ele era um rapaz muito, muito, muito sexy, e era inteligente também. Eu já tinha conhecido rapazes sexy antes, mas não eram muito espertos. Peter era inteligente, era um tipo diferente de pessoa.

TIM LEWIS é jornalista, publicou originalmente a entrevista com David Hockney no britânico "Observer".

CLARA ALLAIN é tradutora.

ANA ELISA EGREJA, 31, é artista plástica.


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