Folha de S. Paulo


Leia um trecho de "Tempos Difíceis", de Charles Dickens

SOBRE O TEXTO Superintendente de uma escola na fictícia Coketown, Thomas Gradgrind, "um homem de fatos e cálculos", que rechaça a fantasia, é o personagem que conduz esse romance publicado pela primeira vez há 160 anos, em que Charles Dickens faz uma crítica aos efeitos da Revolução Industrial. Fora de catálogo no Brasil há quatro décadas, "Tempos Difíceis" ganha nova tradução neste mês pela Boitempo.

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O sr. Gradgrind caminhava da escola para casa em estado de considerável satisfação. Era sua escola, e ele pretendia que ela fosse um modelo. Pretendia que cada criança nela fosse um modelo - como os jovens Gradgrinds eram todos modelos.

Havia cinco jovens Gradgrinds, e cada um deles era um modelo. Haviam sido doutrinados desde a mais tenra infância; adestrados, como pequenas lebres. Assim que puderam correr sozinhos, foram obrigados a correr para a sala de palestras. O primeiro objeto com o qual tiveram uma associação, ou do qual conservaram alguma lembrança, foi um grande quadro-negro no qual um Ogro seco desenhava a giz sinistros algarismos brancos.

Não que conhecessem, por nome ou natureza, qualquer coisa sobre os ogros. Os Fatos os livrem! Uso a palavra apenas para definir um monstro que vivia num castelo de palestras, só Deus sabe com quantas cabeças manipuladas numa só, e capturava a infância, arrastando-a pelos cabelos para tenebrosos covis estatísticos.

Nenhum dos pequenos Gradgrinds jamais vira um rosto na Lua; já ocupavam alturas lunares antes de falar direito. Nenhum pequeno Gradgrind jamais aprendera a tola musiquinha: "Brilha, brilha, estrelinha! Lá no céu, pequenininha!". Nenhum pequeno Gradgrind jamais fora impreciso sobre o tamanho de uma estrela, já que, aos cinco anos, cada pequeno Gradgrind já dissecara a Ursa Maior como um professor Owen e dirigido o Grande Carro como um maquinista de trem. Nenhum pequeno Gradgrind jamais associara uma vaca no pasto àquela famosa vaca do chifre torcido que chifrou o cão que perseguiu o gato que matou o rato que comeu o grão, ou àquela vaca, ainda mais famosa, que engoliu o Pequeno Polegar: nunca ouvira falar dessas celebridades, e fora apresentado às vacas apenas como quadrúpedes graminívoros e ruminantes, com vários estômagos.

Àquele prosaico lar, batizado de Stone Lodge, o sr. Gradgrind dirigia seus passos. Ele estava praticamente aposentado do comércio de ferragens por atacado quando construiu Stone Lodge, e agora procurava uma oportunidade adequada para fazer uma figura aritmética no Parlamento. Stone Lodge situava-se numa charneca distante uma ou duas milhas de uma grande cidade -que será batizada de Coketown neste fiel guia que aqui se apresenta.

Stone Lodge era um elemento bastante regular na superfície da região. Nenhuma dissimulação atenuava ou obscurecia aquele intransigente fato da paisagem. Uma casa enorme e quadrada, com um pórtico pesado que obscurecia as janelas principais, assim como as pesadas sobrancelhas de seu dono ensombreavam seus olhos. Uma casa calculada, planejada, equilibrada e testada. Seis janelas de um lado da porta, seis do outro; doze no total numa ala, doze no total na outra ala; vinte e quatro, somando-se as alas de trás. Um gramado, um jardim e uma pequena entrada, todos regrados e medidos como um livro de contabilidade botânica. Gás e ventilação, serviço de água e esgoto, tudo de primeira. Traves e abraçadeiras de ferro, à prova de fogo de cima a baixo; elevadores para as criadas, e todas as suas escovas e vassouras; tudo que o coração poderia desejar.

Renato Moriconi

Tudo? Bem, suponho que sim. Os pequenos Gradgrinds também tinham gabinetes para vários campos da ciência. Tinham um pequeno gabinete de conquiliologia, um pequeno gabinete de metalurgia e um pequeno gabinete de mineralogia; e os espécimes estavam todos ordenados e rotulados, e as amostras de pedras e minérios pareciam ter sido extraídas com instrumentos extremamente rígidos, como seus próprios nomes; e, para parafrasear a estúpida rima de Peter Piper, que nunca foi dita pelas babás dos pequenos Gradgrinds, se os gananciosos Gradgrinds ganhassem mais do que isso, o que, em nome da Grande Graça, ganhariam os gananciosos Gradgrinds?

O pai dos pequenos Gradgrinds continuava caminhando satisfeito e otimista. Ele era um pai afetuoso, à sua maneira; porém era provável que se descrevesse (se fosse obrigado a dar uma definição, como Sissy Jupe) como um pai "eminentemente prático". Orgulhava-se da frase "eminentemente prático", que parecia ter um significado particular quando aplicada a ele. Em qualquer reunião pública em Coketown, sobre qualquer assunto, algum cidadão decerto aproveitaria a ocasião para aludir ao seu eminentemente prático amigo Gradgrind. O que sempre agradava ao eminentemente prático amigo. Este sabia que tal alusão não era mais do que lhe era devido, mas o que lhe era devido era aceitável.

Ele chegara ao terreno neutro das cercanias da cidade, que não era nem cidade nem campo e, no entanto, a perspectiva de ambos foi arruinada quando ele ouviu o som da música. A banda desengonçada e desafinada, adjacente ao estabelecimento hípico que se instalara em um pavilhão de madeira, zurrava a plenos pulmões. Uma bandeira, tremulando no alto do templo, proclamava à humanidade que o "Circo Hípico
Sleary" reivindicava sua intercessão. O próprio Sleary, uma corpulenta estátua moderna com um mealheiro junto do cotovelo, num nicho eclesiástico de arquitetura gótica primitiva, recolhia o dinheiro. A srta. Josephine Sleary, segundo anunciavam folhetos impressos muito longos e estreitos, iniciava os entretenimentos com seu gracioso carrossel tirolês. Naquela tarde, entre outras maravilhas agradáveis e sempre estritamente honestas que se deveria ver para crer, Signor Jupe "mostraria as divertidas proezas de seu cão altamente treinado, Patas Felizes". Também exibiria "seu espantoso feito de lançar setenta e cinco pesos de cinquenta quilos em rápida sucessão por cima da cabeça, formando uma fonte de ferro em pleno ar, um feito que jamais se tentou neste ou em qualquer outro país, arrancando aplausos arrebatados de multidões entusiasmadas, e por isso não pode deixar de fazer parte do espetáculo". O mesmo Signor Jupe animaria "os vários números, a intervalos frequentes, com gracejos castos e réplicas shakespearianas". Por último, ele brindaria a plateia interpretando seu personagem favorito, o sr. William Button, da rua Tooley, na "recentíssima e hilariante comédia hípica, 'A Viagem do Alfaiate a Brentford'".

É claro que Thomas Gradgrind não prestou nenhuma atenção a essas trivialidades, mas passou como um homem prático deveria passar, espantando do pensamento os insetos barulhentos, ou trancando-os na Casa de Correção. Mas a curva da estrada levou-o aos fundos do pavilhão, e nos fundos do pavilhão havia numerosas crianças em numerosas atitudes furtivas, esforçando-se para espiar as glórias secretas do lugar.
Aquilo o fez parar. "Ora, e pensar que esses vagabundos", disse ele, "estão atraindo jovens hordas para longe de uma escola-modelo".

CHARLES DICKENS (1812-70) escritor inglês, autor de, entre outros, "Oliver Twist".

JOSÉ BALTAZAR PEREIRA JUNIOR, 42, é tradutor.

RENATO MORICONI, 34, é artista plástico, autor do livro "Bárbaro", narrado só com ilustrações (Companhia das Letrinhas).


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