Folha de S. Paulo


Antropoceno, a escaldante Idade do Homem

RESUMO Impacto da atividade humana sobre o planeta gera debate acerca do advento de uma nova época geológica, o Antropoceno. Em livro, a jornalista Naomi Klein prega reviravolta no capitalismo para frear o aquecimento global -tema de conferência em Lima, nesta semana, e de encontro decisivo no ano que vem, em Paris.

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Prepare-se para o advento do Antropoceno. Em 2016 ele poderá estar entre nós. "Antropoceno" é o nome proposto no ano 2000 pelo Nobel de Química Paul Crutzen para uma nova época geológica, a "Idade do Homem". Ela viria suceder o Holoceno, no qual vivemos há quase 12 mil anos, desde o fim da última era glacial.

Nesse intervalo, curto para a o tempo geológico (a Terra tem mais de 4 bilhões de anos), a espécie humana tirou proveito do clima estável e ameno. Desenvolveu a agricultura, multiplicou-se e se espalhou ainda mais pelo globo.

A questão agora é saber se ela modificou o planeta e aqueceu a atmosfera o bastante para deixar uma marca inconfundível no registro estratigráfico. Os geólogos do futuro distante conseguirão distinguir uma camada de terreno que não existiria sem que 7 ou 10 bilhões de pessoas vivessem e produzissem na sua superfície?

A Comissão Internacional de Estratigrafia (ICS, em inglês), a quem compete decidir sobre as divisões oficiais da história da Terra, pode bater o martelo geológico em meados de 2016, quando se realizará o Congresso Internacional de Geologia. Foi esse o prazo que se autoimpôs o Grupo de Trabalho do Antropoceno (GTA) reunido por ela, que tem 37 especialistas e a tarefa de instruir o processo.

Thiago Rocha Pitta

Um deles é o próprio Paul Crutzen. Outro, o jornalista norte-americano Andrew Revkin, convidado por ter introduzido, num livro de 1992, "Global Warming" (Aquecimento global), a ideia de um pós-Holoceno produzido pelo homem. Hoje ele lamenta sua "escolha imperfeita de palavra": "Propus 'Antroceno'... Idiota".

Também integra o grupo o climatologista brasileiro Carlos Nobre, secretário de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. "Acho que será aprovado o estabelecimento de uma nova época, em função do peso de evidências", avalia. "Mas o marco temporal ainda suscita discussões acaloradas."

Não há muita dúvida de que cidades como São Paulo, Nova York ou Mumbai deixarão abundantes vestígios fósseis e arqueológicos para os milênios que virão. Os puristas, contudo, exigem que um novo período geológico esteja demarcado, literalmente, nas rochas.

Uma proposta é fixar o limiar do Antropoceno em 1945, quando começaram as detonações atômicas. Elas aspergiram por todos os continentes uma camada sutil, mas detectável, de plutônio, césio e estrôncio, subprodutos da explosiva reação nuclear.

Outra possibilidade, defendida por Crutzen, seria o final do século 19, no marco da Revolução Industrial. O argumento privilegia os hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (HAPs), poluentes produzidos na queima de combustíveis fósseis (carvão e derivados de petróleo, principalmente) que se depositam em todos os ambientes.

O consumo avantajado de combustíveis fósseis sustenta ainda outra hipótese para a delimitação. Nesse caso, sobressaem os efeitos produzidos com o agravamento do efeito estufa decorrente de bilhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) lançadas no ar.

Assim como a atmosfera, os oceanos também se aquecem no processo. Além disso, tornam-se mais ácidos ao absorver parte do CO2, o que, em algumas profundidades, interrompe o ciclo de deposição de carbonatos que dá origem a rochas claras, como o calcário. O resultado seria uma banda escura no registro estratigráfico.

"O tópico todo é preocupante", resume Naomi Oreskes, historiadora da ciência da Universidade Harvard que integra o GTA.

Oreskes é autora do livro "Merchants of Doubt" (Mercadores da dúvida, de 2011), que demonstra os propósitos ideológicos dos "céticos" militantes em organizações conservadoras como o American Enterprise Institute e a Heritage Foundation, para os quais é uma farsa a noção de mudança do clima causada pelo homem.

Esse pessoal não quer nem ouvir falar em Antropoceno.

LEGIÃO

Em contrapartida, a dupla Antropoceno e aquecimento global faz sucesso com outra turma. Uma legião estimada em 400 mil pessoas tomou as ruas e avenidas de Nova York em 21 de setembro último, na Marcha do Povo pelo Clima. Apesar do nome, lá estavam Ban Ki-Moon, secretário-geral da ONU, que convocara uma Cúpula do Clima para dois dias depois, a ex-presidente da Irlanda Mary Robinson e o ex-vice-presidente dos EUA Al Gore.

Não faltaram, além deles, vegetarianos, ex-hippies sexagenários e indígenas na passeata convocada pela 350.org. A ONG luta pelo retorno à concentração de 350 partes por milhão (ppm) de CO2 na atmosfera terrestre; no fim de novembro, ela estava em 398 ppm, muito acima dos 280 ppm dos tempos pré-industriais.

O CO2 é o principal gás do efeito estufa, por sua capacidade de aprisionar e reter junto à superfície da Terra parte da radiação solar que incide sobre ela, como os vidros de um abrigo para plantas .

Na fracassada Conferência de Copenhague, em 2009, só houve acordo quanto à necessidade de limitar as emissões de CO2 para que o aquecimento global não exceda 2°C. Acima disso, a mudança do clima poderia conduzir a uma série devastadora de eventos extremos como secas, furacões, ondas de calor e enchentes.

No restante, impera o desacordo entre países mais desenvolvidos e menos desenvolvidos. Pela 20ª vez, duas centenas deles estão reunidos em Lima, até a próxima sexta-feira (12), para tentar traçar as linhas de base de um tratado capaz de reduzir as emissões na proporção e no ritmo necessários. O prazo se extingue dentro de um ano, quando se realizará a Conferência de Paris -a COP 21.

Os pesquisadores do clima estimam que, para não ultrapassar a marca dos 2°C, a humanidade conta com um orçamento total, desde o início da espécie, de 1 trilhão de toneladas de CO2 para gastar. Do século 19 para cá, 600 bilhões já viraram fumaça.

Para sobreviver com a pífia dotação de 400 bilhões, seria desejável que as emissões já estivessem em queda, como pressupunha o malfadado Protocolo de Kyoto (1997). Mas continuam a subir. Só recuam em anos de crise, como 2009. Em 2013, o aumento foi de 2,3%.

Se a tendência presente se mantiver, restam apenas 25 anos de carbono para torrar. Isso exigiria cortar para zero as emissões, de um ano para o outro, em 2040. Como não vai acontecer, as reduções teriam de começar já, na toada de pelo menos 8% ao ano.

Thiago Rocha Pitta

Os manifestantes da marcha de Nova York desconfiam de que os governos reunidos em Lima e Paris, sem pressão, não cumprirão a meta de temperatura acordada em Copenhague. Daí a mobilização.

ANTICAPITALISMO

Mais radical é a jornalista Naomi Klein, polêmica autora de "Sem Logo". Em seu mais novo livro, "This Changes Everything - Capitalism vs. the Climate" [Simon & Schuster, R$ 53,30, 576 págs.; R$ 66,71, e-book] (Isso muda tudo - capitalismo contra o clima), ela defende que não é possível enfrentar o desafio da mudança do clima sem virar de pernas para o ar o capitalismo contemporâneo, marcado por desregulamentação, cortes de gastos sociais, privatização e liberalização do comércio mundial.

Nas mais de 500 páginas de texto, não faltam dados e exemplos convincentes de que a economia mundial se tornou dependente do carbono, vale dizer, dos combustíveis fósseis. Como um viciado, aceita pagar cada vez mais para explorar reservas não convencionais, como o gás de folhelho (ou xisto) nos EUA, as areias betuminosas no Canadá e o pré-sal no Brasil.

Klein confronta o leitor com uma conta acabrunhante: as reservas já escrituradas de carvão, petróleo e gás natural correspondem ao quíntuplo do orçamento de carbono que resta para gastar. Ou seja, 4/5 delas seriam "inqueimáveis", do ponto de vista do aquecimento global.

A não ser, é claro, que surjam tecnologias eficientes e baratas para limpar da atmosfera o carbono liberado em décadas após ficar retido nas entranhas da Terra por milhões de anos. O problema é que a indústria fóssil não investe muito nisso, mas sim em aumentar reservas e produção. Para Klein, essa indústria teria de ser obrigada pelos governos a comprometer seus lucros na limpeza do planeta.

Acredite quem quiser. Mas o livro também tem seções para lá de otimistas com os avanços já alcançados em fontes renováveis de energia, como a fotovoltaica (solar) e a eólica (ventos).

Klein se derrama na narrativa sobre comunidades e cidades que retomaram o controle local da geração, contornando a resistência das grandes distribuidoras quanto às fontes alternativas. Ela vê nessa descentralização o germe de um movimento de contestação do capitalismo como o conhecemos e uma oportunidade nunca vista antes pelos movimentos sociais.

Klein não se demora muito na China, cujo capitalismo de Estado produziu a maior máquina poluidora do planeta, tendo já ultrapassado os EUA -embora o país asiático já se torne também o que mais investe em energias alternativas, como solar e eólica.

Uma das passagens mais sublinhadas do livro, como pode constatar quem o lê em versão eletrônica, citada também por Elizabeth Kolbert em resenha na revista "The New York Review of Books", resume a conversão térmica da autora:

"Comecei a perceber todas as maneiras pelas quais a mudança climática pode se tornar um catalisador para a mudança positiva -como ela pode ser o melhor argumento que os progressistas jamais tiveram para exigir a reconstrução e a revitalização das economias locais; para recuperar nossas democracias da corrosiva influência corporativa; para barrar danosos acordos de livre-comércio e reescrever os anteriores; para investir na depauperada infraestrutura pública de transporte coletivo e habitação social; para retomar a propriedade de serviços essenciais como água e energia; para reconstruir o sistema agrícola doente de modo muito mais saudável; para abrir as fronteiras a migrantes cujo deslocamento está ligado aos impactos do clima; para enfim respeitar os direitos de indígenas à terra -tudo isso ajudaria a acabar com os grotescos níveis de desigualdade em nossas nações e entre elas."

REFORMA

Como assinala a resenhista Kolbert, é um programa ambicioso -se não irreal, caberia acrescentar. Klein não chega a provar que a solução para o clima exija uma reviravolta anticapitalista. Baseia sua fé nos movimentos sociais redentores só em si própria -ou seja, em pensamento positivo.

Com essa viseira, não consegue enxergar que o capitalismo não é um monólito, mas um sistema flexível e cambiante. Entre outras coisas, capaz de criar nichos de mercado para energias limpas (como a eólica, recentemente, no Brasil) mesmo em meio às ideias fixas na hidreletricidade e petróleo.

Até os mais céticos quanto ao processo internacional de negociações sobre clima, como o cientista político Eduardo Viola, da UnB, se distanciam dessa perspectiva: "O capital tende a estar cada vez mais dividido entre forças inerciais, conservadoras, e forças que apontam para a descarbonização".

"Mesmo dentro de cada empresa há essa divisão", afirma Viola. "[O impasse] na política internacional é derivado disso." Como Klein, o professor da UnB vê num imposto sobre o carbono o meio mais eficiente para promover a transformação necessária -mas numa moldura capitalista: "As forças reformistas estão procurando regras para precificar o carbono".

Naomi Oreskes tampouco acompanha Klein. "Reconhecer a mudança do clima como uma falha de mercado não obriga ninguém a concluir que a falha não possa ser corrigida", diz a historiadora de Harvard. Na sua avaliação, a xará acaba por confirmar o preconceito dos céticos de que a defesa do clima não passa de ataque sub-reptício contra a liberdade do capital.

"Klein pode estar certa, mas espero que não esteja, porque reformar o capitalismo parece uma tarefa mais difícil que reformar nossos sistemas de energia e infraestrutura. Ambas as coisas parecem quase impossíveis, mas a segunda eu ao menos consigo imaginar."

Andrew Revkin segue na linha de Viola e Oreskes. "Podemos evitar a perigosa mudança climática de origem humana (e os impactos do clima) sem desfazer o capitalismo", afirma o jornalista.

"Existem modelos pós-extrativistas para construir negócios bem-sucedidos. No fim das contas, é um misto de pesquisa básica com operação do setor privado (capitalista) que está reduzindo os cursos da energia alternativa e levando a ganhos de eficiência."

REGENERAÇÃO

A receita reformista favorita aposta na combinação de energia fotovoltaica e eólica, talvez algumas usinas térmicas nucleares, para substituir carvão, óleo e gás natural na geração de eletricidade, que seria distribuída por redes inteligentes ("smart grids") com desperdício reduzido.

Só a radiação solar tem potencial para fornecer pelo menos seis vezes mais energia que os 15 trilhões de watts hoje obtidos de combustíveis fósseis. Boa parte dessa energia poderia ser usada para massificar a dessalinização de água do mar e, quem sabe, para recapturar carbono da atmosfera.

Em vez da sentimental "regeneração" do planeta defendida por Klein no fim do livro, essa perspectiva implicaria redobrar a aposta prometeica no Antropoceno. Se não há volta nos ponteiros do relógio geológico, resta continuar mudando o mundo -para melhor.

Seria a única saída para evitar uma ração impalatável de 2.000 watts por pessoa que a matriz fóssil atual exigiria para baixar as emissões de carbono ao nível necessário. Um americano consome hoje 12.000 watts e jamais se contentaria com menos; o restante do mundo vê como um direito a chance de chegar a esse patamar.

Nem por isso se pode dar Klein por nocauteada. A janela para conter a mudança do clima está se fechando, e a trajetória que governos, ONGs, ONU, empresas verdes e líderes idem -Al Gore à frente como sacerdote-mor do termoevangelismo- até aqui fracassou.

E fracassou, entre outras razões, como aponta "This Changes Everything", porque a mudança do clima se tornou um meio de vida para muita gente. O livro é impiedoso ao desvendar a teia de relações e doações que une as ONGs ambientais mais famosas a empresas e empresários convertidos à causa ambiental que, no frigir dos ovos da rentabilidade, seguem investindo no bom e velho carbono.

PORVIR

Para uns, como Ricardo Abramovay, professor de economia da USP, esse estado de coisas deixa margem para algum otimismo, ainda que tisnado pela dúvida: "Algum dia essa conta terá de ser paga; resta saber se será com catástrofe ou não".

Para outros, como a professora de filosofia Déborah Danowski (PUC-Rio) e o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (Museu Nacional), autores do livro "Há Mundo Por Vir? Ensaio sobre os Medos e os Fins" [Instituto Socioambiental, R$ 35, 175 págs.], há sérias razões para inquietar-se.

"Nosso presente é o Antropoceno; este é o nosso tempo", escrevem. "Mas este tempo presente vai se revelando um presente sem porvir, um presente passivo, portador de um carma geofísico que está inteiramente fora de nosso alcance anular -o que torna tanto mais urgente e imperativa a tarefa de sua mitigação."

MARCELO LEITE, 57, é repórter especial e colunista da Folha.

THIAGO ROCHA PITTA, 34, artista plástico mineiro. As obras aqui reproduzidas fazem parte de uma série inédita de fotos e vídeos realizada em novembro na Argentina.


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