Folha de S. Paulo


Leia "Amy", de Juli Zeh, e "2064", de Albert Ostermaier

"Amy", de Juli Zeh
tradução LUIS S. KRAUSZ

"Bom dia, Juli", diz Amy. "São 7h30. Hora de levantar. Hoje é dia 30 de junho de 2064. Parabéns pelo seu 50º aniversário. Sua temperatura corporal está em 36,9 graus, seu índice de glicemia em 85 mg/dl, seu batimento cardíaco em repouso em 60. Não, 70. Um pouco nervosa agora que sabe que hoje é seu aniversário, não?"

Configurei Amy de tal forma que ela fala num tom descontraído e, às vezes, se permite fazer alguma piada. Mas, para dizer a verdade, mesmo assim, na maior parte do tempo, ela me dá nos nervos. Amy é do tamanho de uma cabeça de alfinete e mora atrás da minha orelha esquerda. Na verdade, ela se chama E-Me, minha personalidade eletrônica. Ela foi inventada para ser uma "life assistant", uma secretária particular eletrônica. Há dez anos que ela me foi imposta.

"Agora vamos tomar banho e fazer a higiene matinal", diz Amy. "Enquanto isso, vou encarregar a cozinha de preparar um café da manhã vitalizante, com 375 calorias, assim como uma xícara de chá. Se você quiser comer alguma outra coisa, por favor informe imediatamente."

"Quero torta de ricota e um copo de vinho espumante", respondo. "Hoje é o dia do meu aniversário."

Amy ri. Qualquer hora, é preciso proibi-la de fazer isso. É o riso alegre de uma mulher de 30 anos. Soa um pouco como meu próprio riso 20 anos atrás, quando eu ainda investia toda minha energia na batalha política contra o controle digital dos cidadãos. Os fabricantes de Amy se orgulham dos seus "voice-prints". Afinal, os clientes devem sentir que lhes está falando uma versão melhor deles mesmos.

"Ainda não se passaram três minutos", diz Amy, referindo-se ao tempo que passei escovando os dentes. Mesmo assim, coloco o Dental Service System de volta em seu suporte. Sei que Amy se irrita com isso. O Dental Service System é o melhor amigo dela. Assim como todos os outros aparelhos elétricos da casa.

"Você sabe que vou ser obrigada a informar o seguro de saúde se isso voltar a acontecer", diz Amy.

Enquanto estou me vestindo, Amy conta como estou. Minha saúde está excelente. Eu me alimento muito bem, pratico duas horas de esporte, todos os dias, apesar dos meus 50 anos. Desde que a política foi abandonada porque, numa sociedade otimizada, não há mais a necessidade de tomar nenhum tipo de decisão, eu me ocupo unicamente com a literatura. Amy não se cansa de enfatizar que vida maravilhosa eu tenho.

"Você é feliz porque você pode se dedicar às coisas belas. Livre de doenças, livre de ameaças, livre de preocupações. Essa é uma vida privilegiada num mundo privilegiado. São 7h43 e você já recebeu 588 votos de parabéns pelo seu aniversário, que nós vamos ler juntas mais tarde. Você está contente com a videoconferência com sua família, às 11h30. Nelson e Ada, seus filhos, se inscreveram para participar, por dez minutos cada um, de uma seção de Holo-Skype. Até lá, temos que concluir nosso programa de saúde e precisamos nos apressar um pouco. Será que você poderia, por favor, terminar de se vestir?"

Saio do banheiro, passo pela cozinha, onde me aguardam chá, que acaba de ser preparado, e müsli, e calço os sapatos no corredor.

"O que é que você está fazendo aí?", pergunta Amy.

Não respondo e saio de casa. Deixo o carro, pois Amy tem acesso ao computador de bordo e jamais autorizaria o percurso que pretendo fazer.

"Um passeio a pé antes do café da manhã? Incomum, mas aceitável. Posso lhe dar um crédito de dois quilômetros de esporte, mas recomendo-lhe planejar o caminho passando pelo Parque Municipal. Pois o teor de oxigênio do ar, aqui no centro da cidade..."

Amy emudece porque precisa fazer cálculos. Há anos que não ando a pé pela cidade, motivo pelo qual o meu incomum e súbito projeto de passeio não se encaixa em meu perfil. As ruas estão mortas. Desde que as pessoas trabalham em suas casas e o Domestic Providing System se encarrega de fornecer todas as coisas de que precisam, há poucos motivos para andar pela cidade. Já há muito tempo que não existem mais lojas na cidade e, mesmo se as houvesse, a venda de vinho espumante e de torta é ilegal. Mas qualquer idiota sabe onde se pode obter estas coisas. Amy também sabe.

"Juli!", ela me chama, quando termina seus cálculos. "Essa não é uma boa ideia. Peço-lhe fazer meia-volta imediatamente."

Apresso meus passos; agora tudo é uma questão de tempo.

"Você está prestes a transgredir as leis. Conforme o § 14 Inciso III da Lei de Entorpecentes, o vinho espumante é uma substância que contém álcool, ou seja, uma droga proibida. Torta de ricota consta no § 342 da legislação antiaçúcar. Vou ser obrigada a denunciar suas intenções!"

"Se você tivesse papilas gustativas, você calaria a boca e se alegraria", digo eu. Mas Amy é incapaz de compreender frases como essa.

"Última advertência. Agora farei a denúncia. Denúncia em 5, 4, 3, 2, 1 segundo. Denúncia efetuada."

À minha frente está a estação de trens, atrás da estação de trens estão os traficantes. Estou com água na boca. Torta de ricota e vinho espumante. Já se passaram 20 anos. As notas de e-100 dólares estão preparadas. Talvez eu devesse acrescentar mais 1.000 e aproveitar a oportunidade para mandar tirar Amy do lóbulo da minha orelha? Também há especialistas nisso atrás da estação de trens.

"Desvio identificado, normalização iniciada", diz Amy, satisfeita. "Chegada da Health Security prevista em 0,3 minuto."

A vista da estação de trens se embaça diante dos meus olhos. Não porque eu me sinta mal, mas porque estou começando a chorar. Paro e ouço as sirenes que se aproximam.

*

"2064", de Albert Ostermaier
tradução LUIS S. KRAUSZ

Para meu 50º aniversário desejei, para mim mesmo, dores nas costas. Queria que não fosse uma dessas manhãs inúteis em que se acorda sem sentir uma dor lancinante nas vértebras cervicais, sem sentir que está cabeceando um pêndulo com as têmporas, sem sentir as dunas da surdez que passeiam pelo corpo. Queria me lembrar de como eram aquelas dores que eu sentia depois de jogar futebol na praia, quando me arrebentava contra as pedras sob a areia, ao me esticar para alcançar a bola, quando cortava as solas dos pés com os cacos de garrafas de cerveja ou quando os dedos dos meus pés se enganchavam na órbita do olho de um semienterrado e meu crânio se precipitava sobre a praia como se fosse uma segunda bola de futebol.

Eles tinham pensado em tudo aqui, nestes prédios de apartamentos. As telas que balançavam ao vento mostravam o mar, as ondas que quebravam, vindo em nossa direção e superando os gritos provenientes dos bairros pobres no abismo que há aos nossos pés. Tudo parecia enganosamente verdadeiro: a areia, os sóis, eles tinham pensado até mesmo nas queimaduras de sol nas nossas peles. À noite, era possível despir-se delas, como se fossem tatuagens, caveiras e cobras que partiam do coração e rastejavam pela garganta, até alcançarem o queixo, as asas nas omoplatas no azul do céu, que neste ano foi vendido a um magnata do ramo dos transplantes, cujo logotipo pendia das nuvens como uma marca d'água.

Eu também teria desejado uma gota de água, de água legítima, na ponta da língua, na ponta da sua língua, uma gota que nós pudéssemos esconder do mundo em meio às nossas bocas unidas por um beijo, uma gota de água que você engoliria como se fosse o amor, e que voltasse na forma de uma lágrima, que eu capturaria com um cílio que cairia sobre a minha face, de onde você o retiraria com a ponta do dedo, dando-o de presente para mim, juntamente com um desejo no qual não quero pensar pois, imediatamente, eles haveriam de realizá-lo para mim, ou mandariam me lançar no poço de energia no qual despencamos sempre que pensamos em qualquer coisa que se pareça a um desejo imaterial.

Que excitante era amar-se depois do jogo de futebol, quando o cansaço saía pela pele, quando o calor das juntas corria pelos membros como um fogo, quando cada beijo significava uma segunda chance e cada sonho tinha um jeito para passar do seu coração para o meu, quando nos desencaminhávamos um para dentro do outro, estreitando os espaços e nos surpreendendo, mutuamente, com lances inesperados. Quando então, na manhã seguinte, as costas doíam e o amor doía, porque eu estava só e porque eles tinham apagado você da minha memória, seus lábios, sua boca em minha orelha, seus seios nas palmas das minhas mãos, que ainda conservavam o cheiro da bola, da praia, eu podia comprar minhas memórias de volta, filtradas, com o logotipo de um patrocinador sobre as suas costas e com implantes de silicone nos lábios e nos mamilos pontiagudos, sob o decote dourado.

Eles diziam que tudo era para um bom propósito, pois isso permitia aos pobres adquirir novos rostos, e a fome deles, os temores e as preocupações deles seriam cirurgicamente removidos e harmoniosamente substituídos por um sorriso feliz. Não espantaria que, em toda a parte, só se vissem rostos felizes? Até mesmo nos olhos dos mais pobres, quando nós os espiávamos com o rabo dos olhos ou os víamos nos estádios com as bandeiras tremulantes, depois que ele foi declarado imortal e sua múmia quatarizada voltou a ser eleita, ano após ano?
Depois da Guerra dos Trinta Anos entre Google, Amazon e Facebook, eles achavam que tinham tudo sob seu controle, por meio dos dados. Porém não foi possível escanear a minha saudade, não foi possível digitalizá-la, assim como não foi possível escanear ou digitalizar meu amor pela bola de couro, quando a Fifa proibiu o couro, e o Google nos tirou a pele, e o Facebook a selou. Eles cometem erros,e o meu segundo aniversário de 50 anos chegou três anos antes do dia certo, e eu realmente estou sentindo dores nas costas. Vou pegar o tampo da mesa, tomar impulso, arrebentar a tela de projeção e surfar, lá fora, na grande onda, e todos eles vão ver que, se nós acreditarmos em nós mesmos, no amor e no futebol, poderemos governar o mundo, sem eles!

JULI ZEH, 40, escritora alemã, autora de peças de teatro, ensaios e romances, como "Juncos" (Record).

ALBERT OSTERMAIER, 46, escritor alemão, é conhecido sobretudo pela sua poesia e peças teatrais.

LUIS S. KRAUSZ, 53, escritor e tradutor, finalista do Prêmio Jabuti deste ano com o romance "Deserto" (Benvirá).

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