Folha de S. Paulo


Leia "Smartshoes" de Kathrin Passig, e o texto de Harald Welzer

"Smartshoes", de Kathrin Passig
tradução LUIS S. KRAUSZ

O senhor já está gravando? Ah é? Tudo? O tempo todo? Ah não, para mim não dá! Eu sou antiquada, gosto de também poder desligar as máquinas. Seu gravador provavelmente nunca pode ser desligado, não é? O meu ainda tem aqui um... aqui, o senhor está vendo? O senhor já nem conhece mais uma coisa assim, não é? Bom, na verdade eu também nunca desligo. Me sinto sempre tão constrangida quando viajo de avião e, quando repetem o aviso de que, durante a decolagem e o pouso não se pode, sob hipótese nenhuma, desligar os aparelhos eletrônicos, pois do contrário pode acontecer alguma coisa. E é só por causa de velharias como nós que eles ainda precisam repetir esse aviso...

Mas então, sobre o que mesmo queríamos conversar? Ah, sim, sapatos. Eu queria comprar sapatos novos e tenho cada vez mais dificuldade para decidir entre os diferentes sistemas operacionais... isso ficou tão complicado! Num deles, o seguro paga apenas a quantia básica, mas não paga os apps. No outro, a gente mesmo tem que se encarregar da manutenção. Ou será melhor pegar os sapatos de graça e pagar apenas pelos deslocamentos? Sim, tudo tem suas vantagens e suas desvantagens. Sim, sim, já sei, há também a opção do Shunix, até eu já experimentei uma vez, sim, sempre se ouve dizer que pessoas normais também são capazes de lidar com isso. Mas para mim não serve, e além disso os sapatos são tão feios. Claro, sei, quando se tem algum tipo de problema com Shoegle ou com Hotboot, ou quando os sapatos despencam, todos os especialistas gritam, em coro: "Com Shunix isso não teria acontecido!"

Bom, mas todos esses problemas ainda não são nada. Vá tentar comprar sapatos com seus pais! Agora tenho que lidar com este problema, pois eles já não têm mais a mesma mobilidade de antes, e é sempre a mesma coisa: primeiro, eles fazem questão de ir a uma loja, uma loja de sapatos. "Onde?", perguntei da primeira vez, "na aldeia-museu, por acaso?". Mas realmente ainda havia uma loja de sapatos lá onde eles moram. Mas é então que as coisas se tornam difíceis porque, para eles, se não tiver cadarços, não é sapato. Cadarços, o senhor ainda sabe o que é isso? No jardim da infância ainda nos ensinavam, na década de 2010, com uma madeirinha de atar laços. Hoje ninguém mais sabe fazer. Mas meus pais fazem questão de cadarço, e não pode haver nenhuma tecnologia, nenhuma mesmo, nem mesmo um GPS. Bom, para dizer a verdade, consigo entendê-los também. Nós acabamos nos acostumando, mas entrementes acho que já são três anos de escola inteiros só para tratar do tema sapatos! Acho que é por isso, também, que eles aumentaram de 8 para 15 o número de anos de escola necessários para se prestar o exame de conclusão. Mas isso já foi depois do meu tempo.

Já nem sei mais dizer como um dia foi possível ler caminhando sem que os sapatos pensassem junto. Suponho que as pessoas se chocavam, o tempo todo, com bancos de calçada, pontos de ônibus e automóveis. E que pisavam nas fezes de cachorros! Para lhe dizer a verdade, às vezes eu ainda piso em fezes de cachorro, de propósito, porque acho tão bonito ver como o sapato se limpa, lambendo-se automaticamente. E, claro, também por causa da multa automática que o dono do cachorro recebe. Não me importa a mínima. Quem não pode se dar ao luxo de um Kotbot também não pode se dar ao luxo de ter um cachorro. Isso é o que eu sempre digo.

Sim, realmente, muitas coisas melhoraram. O primeiro par de Smartshoes que eu tive - sim, o senhor está rindo, era assim que eles eram conhecidos –não se podia nem mesmo molhar. Não sei se o senhor ainda se lembra, mas o fato de que hoje todos os aparelhos extraem sua energia de se molharem e de caírem não tem nada a ver com o fato de que, há 50 anos, os telefones caíam nas privadas o tempo todo. Isso realmente começou com os sapatos. Não era possível sustentar aquela situação de que, depois de qualquer chuva, todo mundo era obrigado a comprar sapatos novos. Muito embora fosse ótimo para os fabricantes! Mas de que jeito as pessoas nos olhavam porque preferíamos andar descalços na chuva! Afinal de contas, o prejuízo causado pela água era altíssimo. Naquele tempo, era preciso fazer sacrifícios para poder tornar-se um Early Adopter! Não era como hoje, ah, não! Entrementes, Early Adopter tornou-se uma profissão, com formação própria. Ganhar dinheiro para se expor aos defeitos de produtos novos - se naquele tempo alguém nos falasse disso, teríamos rido na sua cara.

*

"Quando Harald Welzer completou 50 anos", de Harald Welzer

Algo que não era, em absoluto, previsível à época do meu nascimento: hoje vivemos, de fato, num mundo sustentável. Isso pode ser constatado, entre outras maneiras, pelo fato de que a palavra "sustentável" praticamente desapareceu do vocabulário usual, aliás, assim como a palavra "inovação", que também andava bem na moda há meio século. As sociedades falam sempre a respeito daquilo que elas não são, e as duas primeiras décadas do século 21 foram um desastre em tudo o que dizia respeito ao futuro. Nunca a velocidade da destruição dos recursos naturais necessários à sobrevivência foi tão acelerada quanto naquela época. E nunca as elites foram tão radicais em suas ações no sentido de evitar mudanças. É justamente por isso que falavam tanto sobre esse assunto. Por sorte, muitas pessoas interessadas no seu próprio futuro e no futuro dos seus filhos e netos deixaram de tolerar essa situação. Surgiu, de uma só vez, numa quantidade surpreendente de países, um movimento social que passou a definir a destruição ecológica como uma injustiça social para com os menos favorecidos do presente e do futuro. Com isso, conseguiu-se desencadear efeitos de uma amplitude que jamais poderia ter sido alcançada apenas, por exemplo, por meio de uma política climática. Além disso, as pessoas não se limitaram a protestos e denúncias, mas atacaram os modelos econômicos destrutivos da economia agrária e petrolífera por meio do "divestment", isto é, da retirada de capitais. Ao mesmo tempo, desenvolveu-se um empreendedorismo voltado para a economia do bem-estar social, cujo objetivo não era mais a multiplicação de fortunas individuais, mas sim a multiplicação do bem-estar de todos. Todas essas ações seguiram as ideias de Nikolai Kondratiev, para quem os movimentos sociais que não põem em prática modelos econômicos alternativos não têm nenhum poder, pois ficam sujeitos, o tempo todo, à extorsão econômica dos seus opositores. O novo movimento social foi transformador por si próprio e desenvolveu projetos cooperativos nos setores de produção de bens de consumo, alimentação, mobilidade e moradia. Desde então, é considerado bacana só ter aquilo de que realmente se precisa, e ter o mínimo possível. Foi a partir do estilo de vida do desapego que surgiu o novo movimento social (Loraf = Lifestyle of Relief and Fun, ou estilo de vida do alívio e do prazer): tudo aquilo que não se tem não ocupa lugar, tudo aquilo que não se tem não pode ser roubado, tudo aquilo que não se tem não precisa ser carregado em mudanças, tudo aquilo que não se tem não custa nada. Por outro lado, a vida útil de cada produto foi multiplicada por meio do seu uso social. E logo houve uma redução drástica no número de coisas que cada um tinha. A quantidade média de produtos que cada alemão possuía em 2014 era de 10.000. Hoje, caiu para 500. Com isso, o consumo de matérias-primas reduziu-se radicalmente, assim como o volume de emissão de gases. O prazer multiplicou-se, e o tempo disponível aumentou: ninguém mais desperdiça seu tempo com decisões de consumo.

É muito difícil lembrar o quanto as pessoas trabalhavam há 50 anos. É claro: a redução da produção exige muito menos força e tempo de trabalho. Ao contrário do que acontecia no capitalismo tardio, o progresso da produtividade observado desde a década de 2030 deixou de acarretar a redução dos postos de trabalho, levando, sim, a uma redução do número de horas trabalhadas. Agora, muitos empregados trabalham apenas meio período, e evidentemente também recebem apenas a metade do que recebiam, mas isso não tem praticamente nenhuma consequência sobre o seu nível de vida, pois precisam de menos dinheiro para o consumo.

Aliás, depois do desastroso crash do dólar em 2016, as moedas regionais se difundiram rapidamente: elas valem apenas num perímetro limitado e assim encurtam as cadeias de criação de valor. Empreendimentos que aceitam as moedas regionais escolhem fornecedores que aceitam essa mesma moeda como forma de pagamento. E seus empregados recebem uma parte dos seus salários nessas mesmas moedas regionais. As economias regionais, assim, podem se corresponder perfeitamente com empreendimentos cooperativos.

Graças à abundância de tempo, surgiram não apenas novas possibilidades de trabalho social autoorganizado e de trabalho individual, como também, por meio de redes sociais que se fortaleceram e intensificaram, se reorganizaram as vidas políticas públicas locais. Hoje as pessoas voltaram a considerar os assuntos públicos como seus próprios assuntos, e definem as estratégias de fornecimento de energia, de serviços sociais ou de infraestrutura de transporte coletivo em conjunto com suas comunidades e com seus bairros.

Na modernidade redutora, os que são mais considerados são aqueles que levam a vida mais leve e fácil em todos os sentidos e os que se engajam com maior intensidade pelo bem coletivo. E aqueles que têm as ideias mais ousadas e aparentemente impossíveis são considerados como os exemplos mais interessantes. Não importa que não tenham sucesso, desde que seu malogro seja elegante e desapegado. Tentar e experimentar é considerado sexy, autoironia e generosidade são consideradas bacanas. Pensar por si mesmo é algo admirado. Smartphones e apps são vistos como um engano histórico que, felizmente só durou pouco tempo.

KATHRIN PASSIG, 44, é escritora e jornalista alemã.

HARALD WELZER, 56, é sociólogo e psicólogo social alemão.

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