Folha de S. Paulo


Resposta a uma pergunta, de Robert Walser

SOBRE O TEXTO Este conto, de 1907, integra "Absolutamente Nada e Outras Histórias". O volume reunirá textos escritos pelo autor suíço desde essa data até 1929 e sai em dezembro pela editora 34.

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O senhor me pergunta se eu teria alguma ideia a partir da qual esboçar-lhe uma espécie de esquete, uma peça de teatro, uma dança, pantomima ou outra coisa do gênero que pudesse utilizar, na qual pudesse se apoiar. Minha ideia é mais ou menos a seguinte: providencie máscaras, meia dúzia de narizes, testas, tufos de cabelo, sobrancelhas e vinte vozes. Se possível, vá a um pintor que seja também alfaiate, mande confeccionar uma série de fantasias e trate de adquirir algumas boas e sólidas peças de cenário, a fim de que, envolto em um casaco negro, o senhor possa descer uma escada ou olhar para fora por uma janela e soltar um urro, um urro breve, leonino, denso, pesado, de modo a fazer com que de fato acreditem que é uma alma que urra, um peito humano.

Peço-lhe que dedique muita atenção a esse grito, que lhe confira elegância, que o emita com pureza e correção; depois, então, no que me concerne, o senhor pode apanhar um tufo de cabelo e deitá-lo por terra "doucement". Quando realizado de maneira graciosa, isso produz um efeito horripilante. Vão pensar que o senhor embruteceu de dor. Para obter um efeito trágico, é necessário recorrer tanto aos recursos mais à mão quanto aos meios mais remotos, o que lhe digo para que o senhor compreenda que será bom, agora, enfiar o dedo no nariz e cutucar a valer. Muitos espectadores cairão no choro ao ver uma figura nobre e sombria comportando-se de modo tão grosseiro e lastimável. Tudo dependerá apenas da cara que o senhor fizer e de que lado o iluminarão. Dê uma bela estocada nas costelas de seu iluminador, para que ele se empenhe como deve e, acima de tudo, reúna expressão facial, movimentos das mãos, braços e pernas e boca.

Reprodução

Lembre-se do que eu lhe disse uma vez -e o senhor ainda há de se lembrar, espero-, ou seja, que, com um único olho, aberto ou fechado dessa ou daquela maneira, já é possível transmitir o efeito do temor, da beleza, do pesar, do amor ou do que seja que o senhor queira transmitir. Representar o amor demanda pouca coisa, mas, alguma vez nessa sua vida -Deus do céu!- absolutamente dilacerada, é necessário que o senhor tenha sentido pura e sinceramente o que é o amor e como ele aprecia se comportar. Assim é também, claro, com a ira, com o sentimento de inominável pesar, em suma, com cada sentimento humano. De passagem, aliás, aconselho o senhor a fazer frequentes exercícios de ginástica em seu quarto, a caminhar até a floresta, a fortalecer os pulmões, a praticar esportes, mas esportes seletos e comedidos, a ir ao circo e observar os modos do palhaço e, então, a refletir seriamente sobre com que movimento rápido do corpo o senhor poderá simbolizar melhor um espasmo da alma. O palco é a goela aberta e sensual da poesia; com suas pernas, meu caro senhor, estados de alma muito particulares podem ganhar expressão comovente, isso para nem falar no rosto e nas milhares de funções sugestivas que ele desempenha. Seus cabelos precisam prestar-lhe obediência, se, para simbolizar o pavor, eles hão de se levantar e horrorizar os espectadores, banqueiros e mercadores de especiarias.

O senhor, pois, nada terá dito até o momento; absorto em pensamentos, cutucou o nariz como uma criança mal-educada e sem consideração e agora vai começar a falar. Quando, porém, está prestes a fazê-lo, uma fogosa serpente esverdeada se arrasta sibilante para fora de sua boca retorcida de dor, ao que até o senhor parece tremer de pavor por todos os membros. A serpente cai no chão e se enrola no pacífico tufo de cabelos, um grito de medo ecoa por toda a sala, como se saído de uma única boca; o senhor, porém, já oferece algo de novo, enfia uma faca comprida e curva no olho, de tal forma que, jorrando sangue, a ponta da faca reapareça mais abaixo, no pescoço, próxima da garganta; em seguida, acende um cigarro e se mostra tão singularmente à vontade como se, em segredo, algo o divertisse. O sangue que lhe ensopa o corpo transforma-se em estrelas, e as estrelas dançam sedutoras por todo o palco, ardentes e enlouquecidas; o senhor, por sua vez, as apanha todas com a boca aberta, a fim de, uma a uma, fazê-las desaparecer. Com isso, sua arte teatral terá atingido grau considerável de perfeição. Aí, as casas pintadas do cenário começam a ruir qual bêbados medonhos e o sepultam. Vê-se apenas uma das suas mãos erguer-se de debaixo dos escombros fumegantes. A mão ainda se mexe um pouco e, então, o pano cai.

ROBERT WALSER (1878-1956), escritor suíço de língua alemã.

SERGIO TELLAROLI, 55, tradutor, transpôs para o português Goethe e Marx, entre outros.

ELISA VON RANDOW, 40, é ilustradora.


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