Folha de S. Paulo


A trajetória do novo ganhador do Camões

RESUMO Memorialista e poeta, embaixador feito africanista após sua experiência diplomática no continente, Alberto da Costa e Silva recebe na quarta (29) o Prêmio Camões. Colega e amiga do ocupante da cadeira 9 da ABL conta neste texto a trajetória do vencedor do maior reconhecimento a um autor de língua portuguesa.

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"Cuide bem de suas neuroses." Esse foi um dos inúmeros conselhos que recebi do acadêmico, poeta, ensaísta, memorialista, historiador, africanista, diplomata e o mais recente ganhador do Prêmio Camões: Alberto Vasconcellos da Costa e Silva, ou simplesmente Alberto, como gosta de ser chamado.

Nessa ocasião, almoçava com ele no restaurante Villarino, bem em frente à Academia Brasileira de Letras, espécie de quartel general de Alberto, a despeito de ele andar por lá como se fosse um desconhecido. Com certeza não é: todos o saúdam pelo primeiro nome e empurram cadeiras para que ele possa melhor se locomover pelo local, que não é propriamente generoso nos seus espaços internos.

Alberto -que, como ele define, foi criado e mimado por mulheres, e assim ganhou um ar de "senhorzinho" sem casa-grande- logo escolheu para nós dois: "Para ela o frango (que é o que há de melhor), para mim um salmão". Foi logo explicando: "Minha filha, não como nada que voe ou ameace voar", e arrematou com a conclusão que dá início a esse artigo.

Pois Alberto é assim: sempre ele mesmo, cuidando bem de suas neuroses, dono de histórias impagáveis retiradas de causos da sua vida e de família, de episódios envolvendo políticos e personalidades que conheceu, ou colhidos nos inúmeros livros que leu e que, com sua erudição humanista, vem divulgando nas suas obras.

Alberto nasceu em 12 de maio de 1931 -em São Paulo, mas pouco ficou na cidade-, filho de Creusa Fontenelle de Vasconcellos da Costa e Silva, que cuidaria pessoalmente de boa parte da educação dos filhos, e do poeta Da Costa e Silva, que foi para ele uma presença marcante e paradoxal.

Nascido em Amarante, no Piauí, em 1885, Antônio Francisco da Costa e Silva publicou seu primeiro livro, "Sangue", em 1908. Ele também foi autor da letra do hino do Piauí, em 1823. Pertenceu à Academia Piauiense de Letras, na cadeira 21, mas não conseguiu adentrar a carreira diplomática.

A falta de sucesso teria tido causa peculiar. Nos tempos do barão do Rio Branco, não havia concurso para ingressar na carreira. Era o barão quem selecionava pessoalmente, por entrevista, os candidatos -em geral relacionados a famílias próximas, bonitos e fluentes em idiomas estrangeiros. Da Costa e Silva teria falhado no critério físico: "Olha, o senhor é um homem inteligente, admiro-o como poeta, contudo não vou nomeá-lo porque o senhor é muito feio e não quero gente feia no Itamaraty".

Entre 1931 e 1945, durante os anos de Getúlio, o pai serviu junto à Presidência da República, e a família passou a viver no Rio. Mas uma estranha doença contraída por Da Costa e Silva mudaria o destino e faria com que todos fossem morar no Ceará, onde a mãe contava com o amparo familiar.

O poeta praticamente parou de falar, desligou-se do mundo e se deixou ficar, na mesma poltrona, ausente. O menino guardou a imagem desse pai, sempre em casa, com um livro nas mãos.

No primeiro volume de memórias de nosso autor, "Espelho de Príncipe" (1994), conhecemos um pouco da infância do menino Alberto, em Sobral. O relato chega até a juventude do garoto, quando, junto com a família, e já de volta ao Rio, descreve o colégio marista onde fez amigos de vida inteira, registra as repercussões da Segunda Guerra Mundial, o Brasil da Revolução de 30, bem como as características desse mundo mais largo que passava a conhecer e desfrutar, na então capital do país.

Mais de dez anos depois, em 2007, Alberto publica um segundo volume de memórias. O novo título -"Invenção de Desenho"- é uma brincadeira acerca do gosto por garatujas que herdou do pai. Nunca quis tomar aulas de desenho e sempre disse desconhecer "tal invenção". Por isso achava que todo desenho não passava de uma cópia inspirada por outra mão.

Esse é justamente o truque do memorialista, que faz do gênero uma prática dos outros. Por suas páginas desfilam intelectuais -Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, José Lins do Rego, Josué Montello, Jorge de Lima, Lygia Fagundes Telles, Alceu Amoroso Lima-, personagens e amigos de Alberto.

O memorialista nos conta, como quem joga conversa fora, sobre eventos políticos, todos lembrados com a mesma intimidade: Getúlio Vargas e seu suicídio, Juscelino Kubitschek e a crise da sua eleição; as revelações de Khruschov.

Ainda nesses escritos, ficamos conhecendo melhor sua formação, as primeiras leituras de Manuel Querino e de Nina Rodrigues, sua guinada para o materialismo histórico, seu amor súbito por Deus; paixão que passadas duas semanas seria substituída por outras: Camus, Sartre, o Marx do "18 Brumário", Nietzsche e Freud. Sem esquecer do cinema, do teatro e dos suplementos literários.

Começava a se delinear, então, essa pena de estilo próprio e reconhecível. Por meio dela, diferentes personagens da nossa história são descritos a partir de marcas pessoais, perdendo a soberba para aparecerem como gente do seu tempo e como de fato foram: contraditórios, exuberantes, mesquinhos ou visionários.

PRESSA

Alberto logo experimentaria nova carreira de escritor, como poeta e africanista. Sempre pareceu ter pressa: publica, logo em 1957, uma antologia de lendas indígenas, para o Instituto Nacional do Livro, e, no mesmo ano, trata de reunir em livro os poemas do pai.

Talvez inspirado pelos heróis de suas obras de cabeceira, ou que reconhecia em seu pai na poltrona, o jovem pareceu não se espantar ao saber que seu rito de passagem para a vida adulta se daria nos sanatórios de Campos do Jordão, onde sua alma conheceria a "sonolência e a preguiça". Julgou que morreria cedo, por causa da tuberculose, como seus mestres românticos.

Como isso não se deu, Alberto fez do exílio involuntário outro começo. Lá conheceu sua musa, que também se curava do mesmo problema. Verinha tinha voz de soprano lírico, mas a doença a afastaria por um tempo do canto. Ela seria a companheira de vida toda e inspiraria um livro de poemas premiado, "Ao Lado de Vera" (1997).

Com os pulmões em ordem, Alberto volta ao Rio e se prepara para "vingar o pai", investindo na carreira diplomática. O aluno se forma pelo Instituto Rio Branco em 1957 e atua em Lisboa, Caracas, Washington, Madrid, Roma, isso tudo antes de ser embaixador na Nigéria, no Benin, em Portugal, na Colômbia e no Paraguai.

O diplomata construía seu mapa interno e simbólico, particularmente marcado pela experiência em países africanos. A atuação nesses postos, então pouco disputados, lhe daria gás, experiência, erudição e sensibilidade suficientes para fazer dele um dos nossos grandes especialistas em África, continente que era pouco conhecido e estudado entre nós.

O olhar pousado sobre a "diferença" formataria esse pensador original e atento a outras faces de uma mesma realidade. O diplomata se faria historiador e escreveria uma série de obras, hoje clássicas: "A Enxada e a Lança: a África antes dos Portugueses" (1992); "As Relações entre o Brasil e a África Negra, de 1822 à 1ª Guerra Mundial" (1996); "A Manilha e o Libambo: a África e a Escravidão, de 1500 a 1700" (2002); "Um Rio Chamado Atlântico: A África no Brasil e o Brasil na África" (2003); "Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos" (2004) e "Imagens da África" (2012).

Nesses livros, mostra a importância da diversidade cultural, as formas complexas de organização familiar e política dos nativos, os elaborados costumes religiosos, as engenhosas produções artísticas. Como demonstra de maneira clara, e não menos entristecida, essa riqueza seria em parte dizimada pelos horrores do sistema escravocrata, que acabou por marcar e estereotipar os povos do continente.

O conjunto de sua obra historiográfica mostra o vigor desse intelectual que explorou a história pregressa da África, reviu costumes, estudou a escravidão aqui e acolá, bem como seus traficantes -caso de Xaxá, talvez o maior de todos.

O historiador analisou, sobretudo, as relações entre os dois continentes e suas influências recíprocas. Em seu texto "O Brasil, o Atlântico e a África no século 19", de 1989, fecha questão: "O Brasil é um país extraordinariamente africanizado. E só a quem não conhece a África pode escapar o quanto há de africano nos gestos, nas maneiras de ser e de viver e no sentimento estético do brasileiro [...] Com ou sem remorsos, a escravidão é o processo mais longo e mais importante de nossa história".

Ciente da nossa ignorância acerca desse continente, de onde veio parte significativa de nossa população, o pesquisador atuaria em muitas frentes, recuperando valores comuns inscritos nos lugares mais insuspeitos. Mas também duvidaria das convenções.

No seu livro "Castro Alves, um Poeta sempre Jovem" (2006), Alberto lê os poemas com a sensibilidade de quem entende do ofício, mas com igual desconfiança de quem conhece como ninguém os legados africanos. Tanto que desafia (e prova) que a África do autor de "Navio Negreiro" é antes um continente projetivo, mais próximo da visão romântica de Delacroix e dos orientalismos europeus, que dos escravizados que o poeta podia encontrar nas ruas da Bahia. Irrequieto, Alberto também ensinaria África para as crianças em dois livros -"Um Passeio pela África" (2006) e "A África Explicada aos Meus Filhos" (2008).

Aposta social semelhante que fez com que encarnasse, ao lado de sua Verinha, o papel de tradutor das línguas e costumes dos locais onde foi embaixador. Tamanha coerência e compromisso acabou por incutir na família o prazer de servir o país em lugares tão diferentes. Seus três filhos, de uma maneira ou de outra, seguiram-no ou ficaram por perto do Itamaraty.

Como cronista, Alberto publicaria "O Quadrado Amarelo" em 2009. Nesse livro, ele se faz intérprete social e recolhe telas, livros, poemas e romances que delicadamente entrelaça, formando o que denomina "uma antologia pessoal do mundo" -objetivo e argumento não só desse livro de ensaios, mas de toda a obra do autor.

O lugar perfeito e a palavra justa são também desafios de Alberto, poeta de mão cheia, como o pai -figura à qual, em sua trajetória cheia de deslocamentos, parece sempre retornar. Vêm de seu quinto livro de poemas, "As Linhas da Mão" (1978) estes versos: "Respiro e vejo. A noite e cada sol/ vão rompendo de mim a todo o instante,/ tarde e manhã que são tecido tempo,/ chuva e colheita. O céu, repouso e vento".

Mas talvez seu título de poesia mais conhecido, que lhe deu um de seus três Jabutis, seja "Poemas Reunidos", de 2000 -ano em que também se elegeu para a cadeira 9 da Academia Brasileira de Letras.

Essa obra tão diversa, que não se pode resumir em uma página, se revela una, como uma estrada sem pedágios, entre o intelectual e o habitante de um tradicional edifício em Laranjeiras, no Rio.

Quem entra no apartamento logo vê sua imagem inscrita nos objetos e artefatos acumulados. Visitar a ABL ou participar de uma sessão no Instituto Histórico e Geográfico é como tomar café na intimidade do autor. E é assim por todo lugar: mesmo ler um livro de Alberto é como tomar um gole de cachaça e degustar uma boa prosa.

Grandes intérpretes do Brasil permaneceram boa parte de sua vida no exterior. Alberto da Costa e Silva viu de longe, mas voltou para se certificar de tudo. Na volta, inverteu o lado do binóculo, destacou o detalhe, deslocou o tempo e conferiu ao que viu sabor, cheiro, textura e sensibilidade de poesia.

Com vocês, o vencedor do Prêmio Camões de 2014: "Um casulo de tempo, o centro e o sopro/ da cisma do outro ser que de mim fala/ e que, sonhando o mundo, em mim se acaba".

LILIA MORITZ SCHWARCZ, 56, antropóloga, historiadora e professora titular da USP, é autora de "As Barbas do Imperador" (Companhia das Letras).


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