Folha de S. Paulo


Ao contrário dos homens, mulheres naturalmente odeiam a guerra?

A ideia de que a violência é relacionada ao gênero é amplamente defendida, mas infelizmente o pacifismo das mulheres também é mito

Pouco mais de seis meses atrás, as autoridades de combate ao terrorismo anunciaram uma nova iniciativa a fim de prevenir o alistamento de jovens britânicos para combater na Síria: recrutar mulheres muçulmanas como detetives amadoras. Àquela altura, a estimativa é que entre 200 e 366 cidadãos britânicos tivessem se apresentado como voluntários para combater ao lado dos islâmicos. A vice-comissária assistente Helen Ball, coordenadora nacional de combate ao terrorismo no Reino Unido, disse ao "Guardian" o que as mulheres antimilitaristas escolhidas para a tarefa deveriam procurar: "Uma mulher pode ver membros de sua família passando tempo demais na Internet", ela disse. "Ou perceber caso eles se zanguem com o que vem acontecendo na Síria".

Mas não faria sentido envolver homens muçulmanos no processo, igualmente? Ou havia indícios de que, ao contrário das mulheres, eles pudessem se indignar com a sugestão? Ainda que acadêmicos já tenham enfatizado o risco de encarar as mulheres muçulmanas como proteção automática contra a radicalização, e que uma mãe muçulmana, Najma Hafeez, tenha dito de imediato aos repórteres que considerava o apelo da polícia como "excesso de paternalismo", as suposições de Ball sobre as mulheres como observadoras passivas e em geral benévolas –uma posição possivelmente excêntrica para uma comandante da polícia– foram acatadas como se fossem fato. Talvez ela tivesse razão. Pois esse confiante retrato das mulheres como nutridoras do sexo guerreiro, e possivelmente influenciáveis - talvez baseadas em triunfos não revelados do policiamento maternal - não provocou indignação pública parecida com a que fabricantes despertam rotineiramente ao fazer suposições baseadas em gênero ao, por exemplo, divulgar calçados infantis (como no caso da campanha Let Shoes be Shoes).

Não surgiu uma campanha do tipo "deixe a artilharia ser artilharia" para contestar a declaração de uma palestrante respeitada, Sajda Mughal, durante o lançamento da iniciativa, em Manchester: "Mulheres são agentes da mudança", ela disse. "São elas que podem nutrir e salvaguardar nossas crianças". O que significa que Samantha Lewthwaite, mãe de quatro filhos e, incidentalmente, a "viúva branca islâmica", ao menos de acordo com essa visão essencialista da questão, deve ter passado pelo mesmo programa de perda de identidade sexual a que Lady Macbeth foi submetida.

A oposição quanto ao alistamento de mulheres para servir a essa função cresceu, mas as dúvidas sobre o programa proposto por Ball estavam mais provavelmente concentradas em seu estímulo à espionagem e deslealdade para com os parentes do que em sua fé, mais duradoura que a da Disney e até do que a da campanha Better Together, dirigida às donas de casa, no poder da diferença entre os sexos.

Para sermos justos com relação aos agentes de combate ao terrorismo, a convicção de que mulheres são naturalmente avessas a conflitos continua a ser comum para muitos políticos e pensadores distintos, e mesmo Austin Mitchell, parlamentar trabalhista, compartilha dessa crença. Ele recentemente expressou publicamente sua preocupação quanto ao risco que a gentileza feminina acarreta para o interesse nacional - e deixou implícito o risco que o poder político poderia acarretar para a gentileza feminina. As mulheres, concluiu ele, "se inclinam menos a discutir grandes questões, como se devemos ou não invadir o Iraque".

É fato que, com frequência, a relação entre o número de homens que se veem como estrategistas de poltrona e o número de mulheres que gostaria de ver nossos soldados em zonas de conflito pode parecer justificar a teoria de Mitchell, que eu imagino derivada das ideias de Sara Ruddick, a influente filósofa feminista que acredita que a maternidade tem capacidade de restringir o militarismo.

Outros pessoas poderiam entender a disparidade no tom belicoso dos comentários - presumindo que seja possível desconsiderar a possibilidade de discriminação - como confirmação da análise do professor Simon Baron-Cohen, sob a qual a escassez de mulheres entre os terroristas suicidas pode ser atribuída ao fato de que a empatia é um "atributo natural feminino". Ao contrário dos homens, que são programados, se entendi o argumento direito, a sentir carinho por tanques de guerra.

Portanto, talvez não seja muito científico atribuir valor demasiado a exceções, como Aqsa Mahmood, partidária fugitiva do Estado Islâmico (EI) e autora de ambiciosas ameaças a David Cameron e seus descendentes: "Não se preocupe: em algum momento seu sangue será derramado por nossos filhotes". Ou temos o caso de Khadijah Dare: "Quero ser a primeira mulher britânica a matar um terrorista norte-americano ou britânico". E a ex-compositora, e mãe de dois filhos, que usa o nome de Umm Hussain al-Britani em sua conta no Twitter e ameaçou: "Vocês cristãos precisam ser todos decapitados e ter suas cabeças espetadas nas cercas de Raqqa".

Deve existir uma explicação perfeita, igualmente, para as oponentes mais ativas dessas mulheres, presentes tanto nas forças armadas aliadas quando, com muito mais vigor, na milícia curda YPJ, uma força que tem cerca de 35% de mulheres em seus quadros e agora está combatendo até a morte na cidade sitiada de Kobani. Uma soldada, conhecida como Rehana, é apontada como responsável pela morte de mais de cem combatentes do EI. Sua comandante, uma mulher chamada Narin Afrin, teria aparentemente declarado que "para entrar em Kobani, as gangues do EI terão de passar por sobre nossos cadáveres". Em um artigo fascinante para a revista "New Republic", Sophie Cousins conversa com uma jovem soldada curda no nordeste da Síria, posicionada a menos de um quilômetro das forças do EI. Usando um hijab e armada com um fuzil de assalto Kalashnikov, ela disse à jornalista que "a mulher vem sendo reprimida há mais de 50 mil anos, e agora temos a possibilidade de agir por nossa vontade, ter nosso poder e nossa personalidade".

Mas no Reino Unido, os policiais que combatem o terrorismo ainda se inclinam mais à posição de Kofi Annan. "Por gerações", ele declarou, "as mulheres serviram como educadoras para a paz, tanto nas famílias quanto na sociedade". Talvez seja em parte porque esses tributos exibem a mulher de maneira que poderia ser vista como distintamente atraente que os críticos ao conceito de diferença inata entre os sexos demoraram tanto a confrontar os mitos sobre o pacifismo feminino, da mesma forma que combatem a visão da aversão feminina a riscos como uma potencial salvação para os mercados financeiras, ou a ideia de que as mulheres são oponentes naturais do bestial Partido da Independência do Reino Unido (Ukip).

Não há como negar que matar, diferentemente de matemática, é algo em que a maioria de nós preferiria não ser muito bom, ao menos em tempo de paz. Igualmente, não há como evitar as provas de que mulheres europeias, e mesmo mulheres que já tiveram filhos, endossam os mais bárbaros crimes de guerra de seus maridos e protetores islâmicos, a quem buscam em números cada vez maiores. Em seu novo estudo, o professor Kamaldeep Bhui constata que, mesmo com parentes patrulhando a casa em resposta ao apelo da vice-comissária assistente Bell, jovens mulheres e meninas britânicas apresentam propensão à radicalização semelhante à dos homens; estima-se que elas respondam por cerca de 60 dos 500 recrutas locais do EI.

As mulheres, disse Kofi Annan, "se provaram cruciais para a construção de pontes, em lugar de muralhas". Mas mesmo antes que estudantes criadas do modo mais convencional e conhecedoras dos preceitos da semana de combate ao bullying começassem a postar mensagens genocidas no Twitter, a situação era certamente mais complicada do que isso, em uma zona de guerra.

É verdade que as mulheres são sempre vulneráveis como civis, e que a ONU corretamente prioriza sua proteção. Mas elas também criticam a covardia de homens que recusam a guerra, ajudam a impor a mutilação genital feminina, traem vizinhos, cometem atrocidades em todas as empreitadas do terrorismo - em situações nas quais serem vistas como inofensivas as torna especialmente efetivas. Enquanto isso, inumeráveis recrutas homens desertaram, se fingiram feridos e correram risco de morte para evitar os píncaros de vitória imaginados por Khadijah Dare, mesmo que a realidade, no embrionário califado do EI, implique economizar a Nutella.

A maior glória, para essas aspirantes a altos postos na jihad, parece ser promoção ao batalhão al-Khansa, uma cruel unidade encarregada de impor a condição de cidadãs de segunda classe às mulheres dos territórios ocupados, por exemplo pelo espancamento de mulheres que não saiam às ruas suficientemente cobertas. Por mais absurdamente iludidas que elas pareçam, não estamos falando das primeiras mulheres a cooperar com sua própria marginalização. O determinismo biológico, do tipo que reduz mulheres a nutridoras indefesas, é o improvável melhor amigo da sharia.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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