Folha de S. Paulo


Liuba, o diminutivo de amor

Liuba é diminutivo de Liubov, amor em búlgaro e seu nome inteiro era Liubov Anguelova Boyadjieva. Aqui no Brasil, o nome de minha tia ficou com a grafia Lubov.

Quando Liuba teve um problema nos olhos, durante a recuperação pedia-me para ler para ela. Eram sempre três assuntos por tarde: o jornal do dia, um texto filosófico, sobre arte ou política, e capítulos do livro de seu interesse.

Liuba produziu suas esculturas durante 50 anos, no Brasil e na França, e tinha muita disciplina. Ela e o marido compraram dois pequenos apartamentos, um ao lado do outro, num térreo que dava para um jardim. Num deles, Liuba instalou seu ateliê e usava o jardim para seus trabalhos. No outro, Ernesto cuidava de suas coleções e leituras. Ficavam a poucos metros um do outro o tempo todo e a única pausa que faziam era para almoçar, quase sempre nos mesmos restaurantes das redondezas, onde iam a pé, com Ernesto carregando a bolsa dela.

Nesses momentos aproveitavam para conviver com os amigos e familiares. Muitas vezes estive com eles nesses almoços, e Liuba começava a leitura do menu pelas sobremesas, para o divertimento dele, que dizia que ela tinha dois estômagos, pois não importava quanto comesse, sempre sobrava espaço para o "grand finale".

O seu último Réveillon, na virada de 2004 para 2005, passamos em Paris. E após uma pequena ceia caseira, a convidamos para passar a meia-noite na rua no meio das pessoas, o que para ela era bastante inusitado. Pegamos uma garrafa de champanhe e colocamos algumas taças nos bolsos dos casaco. Ela então resolveu trocar seu casaco por um com mais bolsos, achando tudo muito divertido.

Ela voltou para casa feliz depois de ver os fogos sobre o Sena, da Pont Royal, e a alegria das pessoas confraternizando.

Liuba nasceu na Alemanha, em 1923, onde seu pai, um empresário búlgaro, havia ido comprar máquinas para suas indústrias. Viveu em Sófia até os 19 anos, quando, por conta do avanço dos comunistas, a família saiu para um fim de semana no campo e nunca mais voltou.

Graças aos negócios do meu avô, logo se estabeleceram na Suíça, onde Liuba estudou escultura com Germaine Richier (1902-59).

No início dos anos 50, eles se transferiram para o Brasil, onde ela continuou a produzir.

Em 1957, ao visitar a exposição "4.000 Anos de Vidro", promovida pelo colecionador e industrial Ernesto Wolf no Museu de Arte Moderna de São Paulo, foi abordada por ele ao admirar uma peça.

Naquela noite conversaram até a alta madrugada, e ao fim Ernesto a pediu em casamento. Ela respondeu que aceitaria, com duas condições: "Nunca me peça filhos, nem que eu vá para a cozinha".

Em poucas semanas estavam casados, e se trataram de "katsi" -gatinho, em alemão- pelos próximos 45 anos, até sua morte. Ernesto, do signo de leão, gostava de dizer que era um leão domado pela amada, e fazia com gosto tudo que ela pedia. Em sua mesa de cabeceira mantinha um retrato de Liuba, dizendo assim que não importava de qual lado acordasse, sempre a teria como primeira visão.

Arquivo Pessoal
A escultora Liuba Wolf na fotografia que seu marido Ernesto mantinha ao lado da cama
A escultora Liuba Wolf na fotografia que seu marido Ernesto mantinha ao lado da cama

O casal viajava o mundo todo, enquanto Ernesto, um grande colecionador de arte e principalmente de vidros, dava suas palestras e Liuba fazia exposições, tendo exposto até mesmo no Japão.

Eram amigos da maior parte dos artistas plásticos da época, basta ver a lista de presença das exposições dela e as dedicatórias nas obras de arte que receberam.

Ao mesmo tempo, eram de uma simplicidade encantadora. Numa ocasião, precisaram dedetizar a casa e se mudaram por uma semana para minha casa no meio de duas crianças pequenas, cachorro e gato, dormindo no quarto de hóspedes -na verdade um escritório com uma bicama- e dividindo o banheiro no corredor com as meninas. Eles adoraram.

Liuba nos chamava para sua casa ao telefone e pedia: "Ponha nas meninas aquelas roupinhas vermelhas. Elas ficam 'à croquer!'" (de morder, em francês) e ria.

Ela falava búlgaro, alemão, francês, português, espanhol e inglês com perfeição e alternava entre os idiomas com uma facilidade inacreditável até o fim da vida.

MINKA ILSE BOJADSEN, 56, é educadora.


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