Folha de S. Paulo


A longa luta do outro ganhador do Nobel contra a escravidão infantil

Kailash Satyarthi, 60, que dividiu o prêmio com Malala Yousafzai, dedicou a vida a defender as crianças

Kailash Satyarthi tinha cinco anos quando se conscientizou pela primeira vez de que algumas crianças da Índia, ao contrário dele, não iam à escola e tinham de trabalhar para ganhar a vida.

Viu um menino de sua idade sentado em uma soleira de porta, engraxando sapatos. "Esqueça isso", disseram seus parentes: era uma criança pobre, e essas coisas acontecem. Ainda assim, ele encontrou a coragem necessária a perguntar ao pai do menino por que este estava trabalhando. "Senhor, nascemos para trabalhar", foi a resposta.

Mesmo naquela idade, Satyarthi sabia que não era assim que o mundo deveria ser. E quando concluiu sua educação, deu as costas à carreira que planejara na engenharia civil e se dedicou a corrigir o mal que havia percebido.

Gregor Fischer-16.out.2014/Efe
Kailash Satyarthi em um conferência em Berlim em outubro deste ano
Kailash Satyarthi em um conferência em Berlim em outubro deste ano

Na sexta-feira, os esforços de Satyarthi, 60, foram recompensados com o Prêmio Nobel da Paz. Mas o anúncio fez com que muita gente, mesmo em seu país, indagasse por que todos pareciam saber mais sobre a adolescente paquistanesa Malala Yousafzai, com quem ele dividiu o prêmio, do que sobre o indiano de Déli. Satyarthi mesmo argumentaria que isso diz muito sobre o trabalho que ainda precisa ser feito para mudar a maneira pela qual muita gente na Índia pensa sobre os direitos da criança. Dois anos atrás, uma investigação sobre o tráfego de meninos no Estado de Bihar resultou no resgate de dezenas de crianças. Um ano mais tarde, o Bachpan Bachao Andolan, ou "Movimento Salve a Criança", que ele fundou em 1980, ajudou o "Observer" a expor o tráfico de meninas em plantações de chá na região de Assam, onde os salários baixíssimos alimentam o comércio de escravos contemporâneo.

E em março Satyarthi mesmo desempenhou um papel no resgate de algumas dessas meninas vítimas do tráfico. No documentário sobre o ocorrido, ele é visto liderando uma ambiciosa operação que resultou na libertação de mais de 20 crianças.

Depois que a operação foi concluída, Satyarthi explicou o que o havia levado a trabalhar para resgatar dezenas de milhares de crianças da escravidão, e defender os milhões - cinco milhões, de acordo com dados do governo indiano - de crianças que ainda trabalham, na Índia.

"Não sou a mais pacífica das pessoas, e fico zangado por as pessoas poderem tratar crianças dessa maneira. Elas podem roubar a liberdade de seres humanos, e especialmente de crianças", ele disse.

"Estamos falando de criminosos, mas não sou vingativo. Acredito que haja algo de errado na sociedade como um todo, que haja algo de errado na mentalidade das pessoas, e precisamos mudar isso, às vezes recorrendo a ação judicial e às vezes por meio de conscientização", afirmou.

"Existem muitas ocasiões em encontramos casos de corrupção e suborno, com propinas a policiais, e momentos em que chegamos para o resgate e as crianças desapareceram. O traficante já foi informado, e ele se prepara com armas de fogo, e nos ataca. Essas coisas me deixam zangado, mas minha raiva é uma raiva positiva; não se trata de fazer mal a alguém, mas de trazer liberdade", ele disse.

Há muita gente que gostaria de fazer mal a ele e aos ativistas de sua organização, no entanto. "É muito, muito perigoso e arriscado", disse Satyarthi. "Já sofri fraturas na perna, no crânio, nas costas e no ombro, ou seja, diferentes partes do meu corpo sofreram enquanto eu trabalhava para resgatar as crianças".

"Perdi dois colegas, um morto a tiros e outro espancado. Muitos de meus colegas mais jovens sofreram muitas, muitas agressões. Ou seja, não é um jogo fácil. Essas pessoas [os traficantes de crianças e os empregadores] são como uma máfia; são muito, muito poderosas. É um desafio, definitivamente, e sei que temos uma longa batalha a enfrentar, mas a escravidão é inaceitável, é um crime contra a humanidade. Não estou falando em termos jurídicos: moralmente, sinto que não posso tolerar a perda de liberdade de nem mesmo uma criança em meu país, e por isso sou uma pessoa irrequieta, nesse sentido. É algo que não podemos aceitar".

A escravidão persiste na Índia porque é extremamente lucrativa, ele diz, e porque as pessoas comuns que empregam crianças como empregados domésticos - há pelo menos 100 mil casos como esse só em Déli - simplesmente não pensam estar fazendo algo de errado.

"Não acredito que as pessoas que fazem dessas crianças escravos domésticos pensem sobre isso; elas têm uma mentalidade diferente, sentem que nasceram para extrair trabalho dos mais pobres; e às vezes as pessoas mais pobres sentem que nasceram para trabalhar para os ricos. Não querem saber que isso é ilegal, que é imoral e que é um crime".

Os anos de batalha de Satyarthi resultaram em leis fortes contra o tráfico de pessoas, o trabalho infantil e o trabalho compulsório, na Índia. Mas continua a haver dificuldades para garantir que essas leis sejam implementadas da forma pretendida, ele disse.

Simplesmente resgatar as crianças não basta, afirmou Satyarthi. "Temos sorte porque em muitos casos esses meninos e meninas ainda preservam seus sonhos. E nosso desafio é realizar esses sonhos. Assim, muito trabalho precisa ser feito pela sua reabilitação econômica e social, pela sua reabilitação educacional".

É um trabalho que tem recompensas que lhe são próprias, disse Satyarthi: contemplar o rosto de uma criança libertada é tudo. "Acredito fortemente que todos os seres humanos, e até os animais e plantas, nascem livres. Deus nos fez livres, mas outros seres humanos ou o sistema nos escravizam, e por isso quando conseguimos libertar mesmo que apenas uma criança... ficamos mais próximos de Deus. Penso que, quando aqueles sorrisos muito puros, muito sagrados, surgem no rosto das crianças, o que estamos contemplando é o sorriso de Deus".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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